O mal na literatura e nas artes

Teologia para entendimento e prática de uma evangelização integral, contextual e transformadora (11)

O mal na literatura e nas artes – comprometidos com uma teologia para a transformação da literatura e artes

Leia também:

  1. Introdução

  2. O mal na poítica
  3. O mal na cultura social

  4. O mal na religiosidade

  5. O mal na economia

  6. O mal na mídia

  7. O mal na educação

  8. O mal na ecologia

  9. O mal na personalidade humana

  10. O mal na família



Arte e religiosidade andam muito juntas, visto que tanto a religião é constituída de símbolos, textos em prosa e poéticos, históricos, parábolas etc como a arte se apropria daquilo que é próprio da religião para expressar o dia a dia dos seres humanos em ceias, meditações, manifestações, leituras, análises e tantos outros meios simbólicos de expressão, onde a favor ou mesmo contra a religiosidade latente no ser humano a arte contribui para analisarmos o momento contextual em qualquer época – os poetas presentes nas culturas, nos tempos, nas épocas são os que melhor retratam a época e suas desigualdades – e por poetas não estou simplesmente focalizando um tipo de literatura, mas falando sobre músicos, atores, escritores, repentistas, professores, pessoas que lidam com a criação, a criação do saber onde dia a dia expõem-se e são expostos aos mais radicais conceitos e conceituações sobre o tema da religiosidade no ser humano.

Até mesmo a medicina e a psicologia utilizam-se desse background religioso do ser humano, dizendo-se não se importar com que tipo de fé o paciente tem, mas sim se pode contar com ela, a , para que o tratamento seja feito de forma eficaz e com resultados.

Francis Schaeffer é por definição um autor que trata da modernidade moribumba, mas seus escritos perpassam o tempo e chegam até nós revigorados, como se estivesse tratando de nossa época. Sobre arte e cultura em geral ele diz:

Há muitos meios de se matar o homem (ser humano), como homem (ser humano) hoje em dia. Todos eles operam na mesma direção: nenhuma verdade, nenhuma moralidade. Não é necessário ir a galerias de arte ou escutar músicas mais sofisticadas para sermos influenciados pela sua mensagem. O cinema e a televisão, os meios de comunicação mais comuns, se encarregarão de fazê-lo com eficácia, em nosso lugar (1982, p. 53 – grifo meu).

Nesta relação entre religiosidade (principalmente a cristã) e arte ele diz ainda em outro capítulo que “é possível tomar símbolos cristãos não-definidos e usá-los, porém dando-lhe significados diferentes. Seu uso não implica que necessariamente tenham significado cristão” (Schaeffer: 1981, p. 95). Ele está argumentando conosco a respeito de Salvador Dali e seus quadros com temas cristãos para nos dar um exemplo de como a arte pode usar símbolos cristãos e não defini-los de forma cristã. Ele ainda diz, mas mesma página: “Ele (Dali) relaciona o seu próprio misticismo e o misticismo religioso de Teillard de Chardin à desmaterialização impessoal em vez de algo pessoal” (1981, p. 95 – grifo meu).

Assim como a arte e a literatura, que procuram dar forma ao mundo humano, natural e adentrando também ao sobrenatural faz esta ligação entre arte e religião – a religiosidade tem capacidade de informar (e formar) o ethos (que pode bem ser definido sociologicamente como uma síntese dos costumes de um agrupamento social, indicando de uma forma mais generalizada o ponto de vista deste grupo, formando assim sua identidade cultural) em diversos segmentos culturais, posto que sua proposta é a transformação do indivíduo ou mesmo da cultura inteira. A espiritualidade, religiosidade cristã fornece ao ser humano uma janela pela qual, juntamente com tudo mais que influencia este ser humano, de enxergar o mundo que o cerca – fornece em um sentido mais lato sua cosmovisão de mundo e portanto modifica seus pensamentos e ações – quer religiosas ou não, em uma visão mais monolítica de significado.

O grande problema é a dissociação que a ordodoxia (aqui como conjunto de crenças que um grupo ou indivíduo possui) tem da ortopraxia (interprete como um conjunto de idéias e valores do grupo ou do indivíduo, ou mesmo como um grupo de crenças e práticas religiosas que este grupo ou indivíduo tem). Uma não está em oposição à outra, mas pode muito bem ser um termo de comparação ver se o que se crê está intimamente ligado ao que se faz, correndo-se se o risco de um farisaísmo posterior mas não desafinado com os tempos bíblicos da igreja primitiva, onde Fariseus judeus, mestres e doutores na lei (religiosidade) falavam sobre os seus princípios e regras sem vivenciá-las na sua inteireza.

Joseph Campbell fala das metáforas que as histórias e mitos na religiosidade descrevem e nos dá talvez uma síntese do pensamento que se forma a partir de uma análise dissociada das artes, da literatura, do entendimento cultural sem que se veja nisso o sentido para a espiritualidade do indivíduo ou do grupo. Ele diz “as metáforas apenas aparentam descrever o mundo exterior do tempo e do espaço. Seu universo real é o domínio espiritual da vida interior. O Reino de Deus está no interior de você” (2006, p. 78).

É desta separação, que se tenta fazer, que surge uma idéia dissociada do que a arte e a religiosidde tem em comum.

Adélia Prado, numa entrevista para a Revista Cultura, diz:

Toda obra de arte verdadeira – e eu suponho que esteja fazendo arte, isto é, que esteja escrevendo literatura de verdade – tem um fundamento de ordem religiosa, queira o autor ou não. Primeiro, trata-se de uma atividade da vida simbólica, pois a criação artística é da esfera do simbólico. Os procedimentos da fé e da mística também são dessa natureza. Então, estas duas experiências, estas duas atividades têm um fundo comum. Ainda que o autor se proclame agnóstico ou ateu, a obra o contradiz, porque está acima disso e, queiramos ou não, tem esse fundamento de natureza transcendental, que nós podemos chamar de religioso (2008, p. 1).

Assim então, agir em diakonia em nosso dia a dia, na vida cotidiana não deve passar despercebido o valor das artes, literaturas, escritos, programas de TV, filmes, seriados etc na vida do ser humano e portanto, utilizar-se destes meios pode também ser uma contramão se quisermos formatar o pensamento e transformá-lo em algo monolítico. Em meio a tanto que se ver há um aprendizado maior que tudo isso que é a interpretação da vida, do cotidiano, das demandas sócio-psicológicas da vida em formação do indivíduo em meio a esta desvairada e árida conquista do habitat populoso da cidade e esta análise pode nos dar as perguntas pelas quais ansiamos responder bíblica, teológica e religiosamente.

Igreja missional

Como ser uma igreja missional num mundo hedonista e marcado por uma espiritualidade hipócrita e farisaica além de descomprometida com o outro? Os desafios que a cultura brasileira impõe sobre a espiritualidade cristã são tremendos principalmente no que tange a separação entre uma espiritualidade sadia e a teologia. Tomás de Aquino, no fim da idade média, propõe que o relacionamento com Deus é algo separado do conhecimento mais intelectual, ou sistemático a seu respeito, levando a teologia para uma categoria que ela nunca pertenceu: apenas de ciência desprovida de relação íntima com Deus e incapaz de provocar no ser humano um avivamento amoroso em relação a Deus. Cria-se então um abismo que gera certo conforto na ausência de cobranças sobre a preocupação com a vida e vontade de Deus sobre a minha vida. Deus passa a ser um objeto de estudo e o relacionamento com ele algo para mentes menos esclarecidas. Esta visão separa inclusive a própria teologia de uma missiologia aplicada ao contexto, porque evoca um conhecimento intelectualizado de Deus e assim, abrindo mão de um entendimento prático da aplicação da intimidade com o próprio Deus estudado.

Esses são alguns dos aspectos necessários à diakonia na cidade; assuntos e áreas de interesse em que cada um de nós, cristãos urbanos necessitamos atuar com esta ênfase no ministério cristão, no serviço cristão ao outro. Há necessidade urgente de vivenciarmos uma fé mais viva, mais intensa e que serve a Deus através do serviço à comunidade. Este cristianismo, de uma fé viva e não morta é o verdadeiro cristianismo que diferente da falsa religião, nos constrange a seguirmos o samaritano e não o sacerdote ou o levita do texto de Lucas 10. Ronaldo Lidório, em seu livro Plantando igrejas, nos diz que:

O sacerdote, conhecedor da Palavra, e o levita, ministro da adoração a Deus, formavam o clero religioso da época. Sua relutância em parar perante um homem caído ao lado demonstra muito mais que insensibilidade. Mostra que é possível ser Igreja, conhecer a Palavra, se envolver com a adoração a Deus e ao mesmo tempo desprezar o desespero humano (2007, p. 80).

Podemos, mesmo hoje, reproduzir este modelo perverso, onde nossa prática cristã diferencia tanto de nossas pregações como dos mandamentos bíblicos e das palavras de Jesus.

René Padilha também afirma algo parecido em seu livro Missão integral que “a salvação é o retorno do homem a Deus, mas é também o retorno do homem a seu próximo” (2000, p. 32) colocando de modo direto e simples a temática da diakonia, que gera cuidado e mantém a comunhão.

A única maneira de entendermos e praticarmos este tipo de missão, voltada para o louvor, a glória de Deus bem como para a reconciliação do ser humano e de toda a criação para com o próprio Senhor está no modelo Jesus: a sua encarnação e palavra nos mostram que “o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45).

Quando você enxerga sua cidade, suas dificuldades e necessidades, as ansiedades que transtornam a vida das pessoas levando muitos ao desespero completo, deve pensar como ser um agente de transformação para eles. Ronaldo, ainda no seu livro Plantando igrejas, diz que “igrejas plantadas que ao longo dos anos não fomentem transformação humana e social são redutos espirituais que, mesmo na busca cúltica pelos valores do Reino, deixam de ser sal da terra e luz do mundo” (2008, p. 81). Ele também fornece algumas dicas para um maior envolvimento social que promova esta ação de transformação social. São elas:

  1. Peça ao Senhor para sensibilizar seu coração, para que você seja levado a se importar e observar as demandas humanas e sociais. Olhe para onde está o sofrimento humano.
  2. Pregue de forma inconformada com o pecado e suas consequências, como a injustiça humana, crendo que Cristo há de salvar a alma e dar senso de justiça ao corpo.
  3. Desenvolva uma linha de ação a partir do perfil da sua igreja. Se há um corpo presente de médicos e enfermeiros, promova clínicas volantes. Se há mães e mulheres dispostas, inicie uma creche de auxílio à comunidade carente. Se há um corpo de psicólogos desenvolva um programa de auxílio às doenças emocionais.
  4. Inicie um projeto pequeno e experimental. Envolva-se pessoalmente neste projeto.
  5. Envolva a igreja com a sociedade. Deixe que ela sinta o sofrimento humano e passe a se importar. Leve-os a transitar na sociedade local.
  6. Exponha na Palavra a diferença que Cristo faz em uma sociedade transformando o sofrimento em esperança.

  7. Não se deixe corromper pela revolta contra a miséria e injustiça pois um espírito revoltado não possui equilíbrio para a batalha. Tenha em mente que a Palavra é o melhor instrumento e o maior bem que você pode usar e entregar a uma sociedade. Somente o evangelho produzirá transformação durável e permanente (2008, p. 81).

Estes redutos espirituais a que Ronaldo denomina parecem-se muitos com as clausuras e mosteiros de séculos passados, onde homens e mulheres se refugiavam em busca de uma espiritualidade mais sadia, mas algumas vezes sem um envolvimento direto com o outro. Francisco de Assis entendeu que isso não deveria ser assim e Valdir Steuernagel, em seu livro Obediência missionária e prática histórica, nos diz que:

O movimento mendicante nos ensina que não se pode ficar no passado (sociedade feudal) e cultivar o enclausuramento (vida no mosteiro). É preciso perceber os sinais dos tempos e estar em contato com as crises e mudanças da sociedade para melhor servir a Deus e às pessoas. Atentos às mudanças de seu tempo, os franciscanos foram às cidades e serviram aos pobres. Este é um desafio absolutamente premente e contemporâneo. Não é possível falar em missão hoje sem falar na cidade e no pobre (1993, p. 87).

Ir às cidades e servir às pessoas, cuidar da vida do que necessita tanto pobre quando rico, tanto do desesperado por necessidades físicas como psicológicas ou espirituais é o sinônimo de um evangelho integral que enxerga a alma e também o corpo, tem os olhos voltados para o céu, mas os pés no chão. Isso nos ajuda a entender que “uma espiritualidade sadia abre o coração para Deus, a mente para a Palavra e dirige os nossos pés para um mundo necessitado onde muitos ainda não ouviram essa Palavra, ainda não comeram hoje e têm na vida um pesadelo cotidiano” (Steuernagel, 1993, p. 88).

A cidade não é apenas um contexto de alcance, mas também de estratégia, como nos ensina Jorge Henrique Barro em seu livro De cidade em cidade: “A teologia de missão de Lucas nos diz que á a partir das cidades que as boas novas se espalham. Cidade e igreja estão intrinsecamente ligadas. Missão e cidade estão em constante tensão por causa de tantas mudanças e dificuldade que devemos enfrentar” (2006, p. 221).

Que Deus nos ajude a sermos diaconais com a cidade, com nosso contexto, entendendo sua cosmovisão bem como suas demandas e necessidades, carências e afetividades, rupturas e construções e assim devemos desejar ser usados por Deus para a transformação deste contexto para a glória do Seu próprio nome.

Fim da série