Análise: Fargo

Lembram que Davi, homem segundo o coração de Deus, passeava pelo palácio e resolveu passar o tempo cometendo nada mais nada menos que um adultério? Tudo bem – ele pensa, até que a mulher aparece grávida. Pronto, está feita a m@$a. Calculista, busca tapear o marido traído, seu fiel soldado Urias. Sem sucesso, providencia sua eliminação definitiva da história. Eu sempre me armei com o pensamento de que qualquer pessoa é capaz de fazer qualquer coisa, boa ou ruim, quando em determinada situação. Então, em sua soberania na administração das providências que permitem ou impedem nossos atos pecaminosos, que Deus nos livre de determinadas situações. “Não nos deixe cair em tentação, mas livrai-nos do mal”, já nos ensinou a orar o Senhor. Pedimos, assim, que Deus nos livre da mulher rixosa, do tolo escarnecedor, do louco assassino, de uma mala de dinheiro, da doença terminal, do ódio racial, da família mafiosa, de gente tapada, da falta de sentido na vida; Deus nos livre do outro… Mas há aquelas vezes em que nos é permitido deparar com tais situações. Momentos em que o mundo deixa de fazer sentido. Chesterton faz a pergunta: “como podemos imaginar ficarmos, ao mesmo tempo, assombrados com o mundo e, mesmo assim, nele nos sentirmos em casa?”.

Vocês viram a série “Fargo”? Há um tempo vi o filme de 1996 e, recentemente, quando a série foi parar na Netflix, fiquei empolgado e: UAU! A série toda é muito boa, mas a segunda temporada é a melhor, então, caso não tenha visto, faça como quando degustava uma “Trakinas”: reserve o recheio para o final. Não vou dar spoilers, nem fazer uma crítica da produção – você já pode encontrar muito disso na internet. “Fargo” me pegou por ser o tipo de roteiro no qual uma atitude inesperada explode na nossa cara. Conforme as tramas se desenrolam, vão surgindo os devidos frutos e, por eles, conhecemos as respectivas árvores.

Como a segunda temporada é minha preferida, o que vem a seguir refere-se mais a esta, embora englobe referências às demais, já que possuem elementos em comum. A relação entre os gêneros está sempre presente e as personagens femininas são mesmo incríveis, tanto no filme como em toda a série. Contudo, esta é uma temporada sobre guerra e, como dizem: guerra é guerra. Seja entre facções criminosas, seja entre nações, ou entre raças, ou instituições, ou irmãos, ou entre o corpo e um câncer, uma guerra é sempre uma busca brutal pela conquista do poder, pelo domínio mediante a eliminação daquilo que se lhe opõe. E a guerra não faz distinção de pessoas. Nela se mata a todos: vilões, mocinhos, soldados fiéis, vagabundos, belas jovens, senhoras idosas. Nada faz sentido, apenas a conquista e, na conquista, não há empatia: o outro será sempre o outro a ser eliminado. “De onde vêm as guerras e contendas que há entre vocês? Não vêm das paixões que guerreiam dentro de vocês?” (Tg. 4.1 – NVI). Em contraponto, em Cristo, também não há distinção: não há judeu nem grego, escravo ou livre, homem ou mulher, mas porque todos são um e o outro deixa de ser outro.

Não vou discorrer aqui sobre niilismo e existencialismo pois serei pedante. Peço a alguém mais capacitado que o faça. Mas digo apenas que ouço o Marcos Almeida cantar: “hoje tem guerra, amanhã também”. E, estando em campo de batalha e sendo um alvo em potencial, o que é a vida diante da morte iminente? Dois episódios nos propõem uma conversa sobre a ideia de que não há qualquer sentido ou utilidade na existência já que todos morrerão. Uma boa resposta, que combina deslumbramento e acolhimento neste mundo tão estranho, vem de onde menos se espera e, aí, nos afeiçoamos à personagem com câncer –  a realista e sensata Betsy Solverson (Cristin Milioti). Nos afeiçoamos à Betsy e às crianças que aparecem entubadas e sem cabelo nas redes sociais todos os dias, mas: quem ficará nesta vida para sempre? Quem precisa ser salvo? Quem precisa de cuidado? A gente precisa se dar conta de que o Renato tinha razão quanto à necessidade de se “ama-aar as pessoas como se não houvesse amanhã”. O jeito é correr para salvar, como pudermos, os que estão a caminho do fogo, sabendo que o inesperado acontece.

O combo “Fargo” (filme + série) é uma ótima pedida para quem quer pensar um pouco sobre isso em coisas como: “aquele que julga estar firme, cuide-se para que não caia”; “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”, “o que faz uma cova nela cairá e o que revolve a pedra, esta sobre ele rolará”, “nada há encoberto que não haja de ser descoberto, nem oculto, que não haja de ser sabido”, “é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”, “a vingança nunca é plena, mata a alma e envenena” e coisas assim, depende dos óculos que você tem.

Thiago Menillo
Apaixonado por animação stop motion, Peanuts, romances russos, fábulas, fantasia e teologia; gosta de escrever e desenhar.