Abel e Caim

A humanidade foi criada num lugar perfeito, mas pecou e foi expulsa, vivendo agora “em trabalhos e fadigas numa terra que o Senhor amaldiçoou” (Gênesis 5:29). E assim começa a saga da humanidade na terra.

Adão era lavrador, e seu primeiro filho Caim também seguiu esta profissão. Mas Abel foi pastor de ovelhas.

É significativo que o filho que seguiu a profissão do pai também fez o que Deus lhe havia proibido, enquanto que o filho que seguiu uma profissão diferente do pai não pecou. Deus disse a Caim: “o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo”. E Caim não dominou. Adão foi tentado por Eva, que por sua vez foi tentada pela serpente, o diabo. Mas Caim foi tentado pelo seu próprio desejo (Tiago 1:14-15), e representa o estado em que a humanidade está de decadência. Desejos provindos de um coração pecador. Caim significa “varão”, e podia ser bonito por fora, mas era como os sepulcros ornamentados, belos por fora mas por dentro cheios de podridão. Um coração bom produzirá obras boas, mas um coração mau produzirá obras más.

O apóstolo João comentou sobre Abel e Caim (1João 3:11-12):

“A mensagem que ouvistes desde o princípio é esta: que nos amemos uns aos outros; não segundo Caim, que era do Maligno e assassinou a seu irmão; e por que o assassinou? Porque as suas obras eram más, e as de seu irmão, justas.”

João diz que Caim era do Maligno. Caim e Abel representam uma humanidade dividida entre maus e justos, e a história da humanidade é a história do conflito entre os maus e os justos. Por que Caim matou Abel? Os justos apenas com seu modo de viver justo condenam os maus. Estes sentem-se culpados e sentem que se aliviarão com a ausência dos justos. Pelo princípio do relativismo: “se não houver nenhum justo aqui, eu pecador serei o mais justo”. Isso se manifesta em indivíduos e se manifesta também coletivamente, neste caso um grupo pressionando um cristão a fazer algo licensioso. E se este não o faz, colocam-no numa posição de desprezo em relação à coletividade.

Jesus disse aos fariseus e aos intérpretes da lei (Mateus 23:35; Lucas 11:51): “Enviar-lhes-ei profetas e apóstolos, e a alguns deles matarão e a outros perseguirão, para que desta geração se peçam contas do sangue dos profetas, derramado desde a fundação do mundo; desde o sangue de Abel até ao de Zacarias, que foi assassinado entre o altar e a casa de Deus.”

Jesus os estava culpando até do sangue de Abel! Mas que culpa eles tinham do sangue de Abel? A culpa de trilhar no mesmo caminho de Caim, a culpa de não amar ao próximo, seus irmãos, e dificultarem a vida do próximo, com isso facilitando as próprias vidas! Condenando e matando a voz que se levantava para desmascarar os erros!

A geração dos maus contra a geração dos justos. A semente da serpente contra a descendência da mulher.

É curioso que a morte seja algo ruim, e o primeiro a morrer tenha sido um justo. Ao passo que o seu assassino foi impedido de morrer, com um sinal. Certamente Abel, o primeiro mártir desde a fundação do mundo, pode ter falado como falou o primeiro mártir depois de Cristo: “Senhor, não lhes imputes este pecado.” (Atos 7:60). Abel foi o primeiro mártir do Velho Testamento, e o sacerdote Zacarias foi o último mártir do Velho Testamento (2 Crônicas 24:21).

Abel e Caim ofereceram sacrifício a Deus. Cada um deu uma parte do fruto de seu trabalho. Mas Abel deu das primícias. O autor de Hebreus diz que Abel teve a aprovação de Deus porque ofereceu seu sacrifício pela fé (Hebreus 11:4). Não foi o tipo do sacrifício, mas o tipo da fé, e da dedicação que tornou o Abel aceitável a Deus, mas Caim não.

No entanto, como deve ter sido difícil para Abel sacrificar uma das suas ovelhas, das quais ele cuidava com carinho! Sendo ele um arquetipo de Jesus Cristo, o Bom Pastor, que dá a vida pelas ovelhas.

Já o Caim, quando Deus lhe perguntou onde estava seu irmão, respondeu: “acaso sou eu tutor de meu irmão?”. Caim não tinha vocação pastoral, nem paternal, nem fraternal. Para Caim era cada um por si e Deus contra todos. Para Caim, o fato de Deus permitir que ele continuasse vivendo foi uma tortura imensa. Ele nem pensou que merecia um castigo. Teve ainda a sorte de se casar e ter filhos. Construiu uma cidade-fortaleza em terras distantes, com medo que alguém quisesse vingar a morte de Abel. Depois, quando a terra se encheu da maldade dos homens e Deus se arrependeu de ter criado a humanidade, tendo Deus mandado o dilúvio, ele afirmou pela primeira vez que quem matasse alguém, como Caim fez, não ficaria impune como Caim (Gênesis 9:5-6).

Mas embora haja esta separação entre os justos e os injustos, devemos lembrar de considerar como Salomão: “não há homem justo sobre a terra que faça o bem e que não peque” (Eclesiastes 7:20). Todos pecamos, mas uns são justos pela fé.

A palavra “mártir” em grego tem o significado de “testemunhas”. Quando Jesus diz: “e sereis minhas testemunhas…” a palavra que ele usou em grego foi “mártir”. Estou lendo a História da Igreja escrita por Eusébio (263-340 d.C.), e neste livro podemos ver como havia um incentivo para ser mártir, dar testemunho de Cristo com sua morte, a ponto de alguns relatarem que corriam para as feras em vez de fugir delas, que corriam para se entregar aos perseguidores em vez de fugir. Faziam do martírio uma coroação.

No Apocalipse diz que Jesus é “A Testemunha” (Ap 1:5), por excelência, ou no termo original, “O Mártir”, aquele que deu testemunho de seu amor até à morte.

Eu me pergunto: Deus quer que morramos? Ou Deus quer que preservemos nossa vida? Deus quer que nos defendamos? Deus quer que vivamos aqui? Não está escrito que esta vida e seus prazeres e alegrias ainda que passageiros foram criados para serem aceitos com ações de graça (1Tm 4:4)?

Eu concluo que devemos preservar nossas vidas e gozarmos dos prazeres de modo santo, contudo o justo deve ter um caráter que reconheça que há certas coisas mais importantes que sua própria vida. O justo não abre mão de sua justiça e da Verdade, ainda que seja levado às últimas consequências.

O martírio é realmente uma coroação, pois é o “gran finale” da vida do justo. O justo ainda fala mesmo depois de morto. O seu sangue clama a sua justiça. Foi dito que o sangue dos mártires do cristianismo adubou a terra para conversão de muitos.

Contudo a uns Deus chama para serem testemunhas no martírio, a outros ele chama para testemunharem de outras maneiras. Uns se defendem, outros se entregam, mas todos são justos. Cada um cumpre seu papel que Deus lhes dá. Uns pela fé escaparam ao fio da espada, outros pela fé foram mortos ao fio de espada. Uns pela fé fizeram-se poderosos em guerra e puseram em fuga exércitos, outros pela fé foram apedrejados, serrados pelo meio, andaram peregrinos, vestidos de peles de ovelhas e de cabras, necessitados, afligidos, maltratados, errantes pelos desertos, pelos montes, pelas covas, pelos antros da terra… (Hebreus 11:32-38).

O importante para o justo não é a sua vida, mas a Verdade, ou a Fé, pela qual ele vive.

Sejamos testemunhas de Jesus Cristo, mesmo se tivermos de ser coroados com o martírio. Aliás, disse o apóstolo Paulo: “dia após dia morro!” (1Co 15:31). Pedro disse que Ló quando estava em Sodoma, por ser justo, afligia sua alma justa quando via ou ouvia falar dos pecados dos sodomitas (2Pedro 2:8). E nós? Estamos nos afligindo? Estamos nos martirizando? Sofrendo? Clamando? Morrendo? Testemunhando?