O ciclo infinito [e opressor] do tempo

3:1 Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo propósito debaixo do céu:

2 há tempo de nascer e tempo de morrer; tempo de plantar e tempo de arrancar o que se plantou;

3 tempo de matar e tempo de curar; tempo de derribar e tempo de edificar;

4 tempo de chorar e tempo de rir; tempo de prantear e tempo de saltar de alegria;

5 tempo de espalhar pedras e tempo de ajuntar pedras; tempo de abraçar e tempo de afastar-se de abraçar;

6 tempo de buscar e tempo de perder; tempo de guardar e tempo de deitar fora;

7 tempo de rasgar e tempo de coser; tempo de estar calado e tempo de falar;

8 tempo de amar e tempo de aborrecer; tempo de guerra e tempo de paz.

9 Que proveito tem o trabalhador naquilo com que se afadiga?

10 Vi o trabalho que Deus impôs aos filhos dos homens, para com ele os afligir.

11 Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até ao fim.

12 Sei que nada há melhor para o homem do que regozijar-se e levar vida regalada; 13 e também que é dom de Deus que possa o homem comer, beber e desfrutar o bem de todo o seu trabalho.

14 Sei que tudo quanto Deus faz durará eternamente; nada se lhe pode acrescentar e nada lhe tirar; e isto faz Deus para que os homens temam diante dele.

15 O que é já foi, e o que há de ser também já foi; Deus fará renovar-se o que se passou.

A descrição é agradável e poética, com uma variação de humor e de ação revelando diferentes ritmos nas atividades humanas. No entanto na busca do supremo sentido da vida proposta pelo Koheleth este ciclo pode tornar-se opressor (v.10). Alguns podem concluir que a vida não passa de uma dança ao som de uma música, ou de muitas delas, que não foram compostas ou escolhidas por nós; outra conclusão é que nada do que buscamos demonstra ter alguma permanência.

Nos poucos versículos seguintes (vv.10-15), o nome “Deus” (elohim) aparece seis vezes[1]. “Podemos suspeitar, portanto, que este trecho trará uma das reflexões teológicas mais densas do livro de Koheleth”.

Qual é a importância da eternidade no coração do homem? No v.11 o Koheleth nos faz ver que o ciclo do tempo não é algo desordenado, mas um padrão revelador – trata-se de uma revelação de Deus[2]. Diferente dos animais – completamente contidos pelo tempo – o ser humano intui que há mais da vida e deseja obter esta plenitude. Para o secularista[3], a impossibilidade de satisfazer plenamente esta inquietação inominada [que o Koheleth chama de eternidade] é desanimadora. Se nada é permanente, somos apenas passageiros do tempo.

Para satisfazer esta necessidade exclusivamente humana, tanto os crentes quanto os incrédulos podem refugiar-se na vida aproveitando-a ao máximo (v.12-13), mas o homem que não têm fé age sem perceber que está, na verdade, tentando satisfazer um desejo divinamente criado e que, portanto, só pode consumado nEle (v.14). Agostinho confessa lindamente: “Fizeste-nos para ti, e nosso coração não encontra descanso enquanto não repousa em ti”.

O crente é capaz de aceitar o ciclo e as limitações do tempo, mas vê como uma tarefa – um dom de Deus (v.13) – uma porção distribuída a cada um, cujo propósito é conhecido pelo Doador e é parte de sua obra eterna – Deus não faz nada em vão. O v.14 destaca que os planos divinos são diferentes dos nossos e em nada precisam ser corrigidos ou acrescidos: eles perduram. O eternamente do versículo 14 combina com a eternidade colocada no coração do homem (v.11). Participar um pouco disto, por mais modestamente que seja, é um escape da “vaidade de vaidades”.

Uma nota sobre o v.15: O homem, ser passageiro, não pode ser ponto de referência do tempo que foge e se escapa; Deus, porém, não está sujeito ao processo do tempo, supera-o e alcança-o em toda sua extensão mesmo de passado e de futuro, por isso não é estranho que se possa dizer que Deus vai em busca do passado. Segundo a mentalidade de Koheleth, Deus o encontra e o alcança, o homem não[4].

O problema da injustiça

3:16 Vi ainda debaixo do sol que no lugar do juízo reinava a maldade e no lugar da justiça, maldade ainda.

17 Então, disse comigo: Deus julgará o justo e o perverso; pois há tempo para todo propósito e para toda obra.

18 Disse ainda comigo: é por causa dos filhos dos homens, para que Deus os prove, e eles vejam que são em si mesmos como os animais.

19 Porque o que sucede aos filhos dos homens sucede aos animais; o mesmo lhes sucede: como morre um, assim morre o outro, todos têm o mesmo fôlego de vida, e nenhuma vantagem tem o homem sobre os animais; porque tudo é vaidade.

20 Todos vão para o mesmo lugar; todos procedem do pó e ao pó tornarão.

21 Quem sabe se o fôlego de vida dos filhos dos homens se dirige para cima e o dos animais para baixo, para a terra?

22 Pelo que vi não haver coisa melhor do que alegrar-se o homem nas suas obras, porque essa é a sua recompensa; quem o fará voltar para ver o que será depois dele?

O Koheleth observa a justiça humana e faz uma afirmação ácida, porém com muita correção: “Deus julgará” (v.17). Mas por que a demora? Por que agora ainda não é o tempo adequado para a justiça universal? A essa pergunta [não enunciada, apenas implícita], os vv.18ss dão uma resposta tipicamente dura, partindo do princípio que a busca por uma Filosofia de Vida genuinamente bíblica não se trata sobre ensinar a Deus o que ele deve fazer, mas primeiramente aprender a verdade sobre nós mesmos.

Os vv.19-21 dão um nó na cabeça de muitos leitores do Koheleth. Numa leitura superficial, o pregador está comparando homens aos animais, sem apontar nada que os diferencie. Uma boa chave para compreender este trecho é entender a frase central: “Todos vão para o mesmo lugar”. Quem são estes “todos”? Para compreender isto precisamos recorrer a outro texto bíblico que aborda o assunto:

Salmo 49:12-15 (NVI)

12 O homem, mesmo que muito importante, não vive para sempre é como os animais, que perecem.

13 Este é o destino dos que confiam em si mesmos, e dos seus seguidores, que aprovam o que eles dizem. Pausa

14 Como ovelhas, estão destinados à sepultura e a morte lhes servirá de pastor. Pela manhã os justos triunfarão sobre eles! A aparência deles se desfará na sepultura, longe das suas gloriosas mansões.

15 Mas Deus redimirá a minha vida da sepultura e me levará para si. Pausa

O segmento do Salmo fala do homem muito importante[5] e explica quem estes homens confiam em si mesmos e influenciam outras pessoas (a ponto de ter seguidores). Este homem “em sua ostentação” é a elite do pensamento humano. No entanto o Koheleth diz que são “como os animais, que perecem”. O melhor que podem obter, de acordo com o v.22, é a satisfação temporária de executar bem o seu trabalho. O que está faltando – e é virtualmente tudo – é a satisfação de aceitar esse trabalho como um dom do Criador (v. 13), e oferecê-lo a ele.

A filosofia abordada aqui pelo Koheleth foi posteriormente sintetizada pelo grego Protágoras. Sua tese: “O homem é a medida de todas as coisas” tornou-se padrão da cosmovisão ocidental. Uma vez que a medida de todas as coisas é o homem e seu conhecimento está limitado pelos sentidos, que mudam de uns para os outros, o certo e o errado [a justiça e injustiça] é resultado de um acordo entre os homens, e não a partir de uma verdade absoluta.

O Novo Testamento nos conta a história de um homem muito importante[6] que veio se encontrar com Jesus. Sua pergunta era sincera: “que devo fazer para ganhar o céu”[7]. A seguir, este homem muito importante relata sua satisfação por ser um cumpridor fiel das leis religiosas. Jesus olhou para aquele homem muito importante, o amou e lhe disse: “Falta­te uma coisa só: vende tudo o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue­me”.

O Koheleth nos ensina sobre a universalidade da morte, mas o salmista me mostra que “Deus redimirá a minha vida da sepultura e me levará para si” (Sl 49:15). O que faltava ao homem muito importante que visitou Jesus era abrir mão da recompensa das suas obras (Ec 3:22) para depositar sua confiança final na palavra de Jesus.

Notas:

[1] sete na tradução portuguesa, uma vez que há outros termos hebraicos que são traduzidos por Deus

[2] A Teologia Sistemática considera a Revelação de Deus como Geral e Objetiva [ou Específica]. A Revelação geral se refere às verdades gerais que podemos aprender sobre Deus através da natureza. A Revelação objetiva [ou especial] se refere àquilo que podemos aprender de Deus através da sua Palavra e de Jesus.

Em relação à Revelação geral, Salmo 19:1-4 declara: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento anuncia as obras das suas mãos…” De acordo com essa passagem, a existência e o poder de Deus podem ser vistos claramente através da observação do universo. A ordem, os detalhes e a maravilha da criação falam da existência de um Criador poderoso e glorioso, porém não dão detalhes objetivos sobre seu Ser.

Na Revelação especial Deus se faz conhecido com uma clareza e plenitude que superam em muito a Revelação geral. Deus se manifestou tornando-se visível ao homem (as teofanias do Antigo Testamento); Também se revela por meio das Escrituras Sagradas; e, de forma final e completa Deus se Revela em Jesus Cristo (Colossenses 2:9 “Porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade”)

[3] Por secularista entenda-se aquele que vive somente na perspectiva do tempo presente, sem crer (ou sem buscar) a eternidade.

[4] José Vilchez Líndez

[5] Em outras traduções: o homem em sua ostentação; ou o homem que está em honra.

[6] Marcos 10:17-22

[7] Tradução O Livro