Dinheiro e poder: a satisfação do medo

4:1 Vi ainda todas as opressões que se fazem debaixo do sol: vi as lágrimas dos que foram oprimidos, sem que ninguém os consolasse; vi a violência na mão dos opressores, sem que ninguém consolasse os oprimidos.

2 Pelo que tenho por mais felizes os que já morreram, mais do que os que ainda vivem; 3 porém mais que uns e outros tenho por feliz aquele que ainda não nasceu e não viu as más obras que se fazem debaixo do sol.

Na última semana abordamos sobre o Ciclo infinito [e opressor] do tempo e o Problema da Injustiça. Os vv.4:1-3 falam da opressão causada pelo poder. Sua tese inicial é que quanto mais controle o sujeito tiver, maior a tendência para a tirania.

A Palavra de Deus diz que Deus não se agrada da nossa indiferença em relação às desigualdades sociais. Assim, não deverá haver pobre algum no meio de vocês, pois na terra que o Senhor, o seu Deus, lhes está dando como herança para que dela tomem posse, ele os abençoará ricamente, 5contanto que obedeçam em tudo ao Senhor, o seu Deus, e ponham em prática toda esta lei que hoje lhes estou dando.”[1]

Mas vejam como é fácil subverter este mandamento: No sábado anterior à Semana Santa Jesus e seus discípulos chegaram ao subúrbio de Jerusalém, em Betânia, e se hospedaram com seus amigos Lázaro, Marta e Maria[2]. Durante o jantar, Maria toma um perfume caríssimo, derrama sobre os pés de Jesus e enxuga com seus cabelos. Os discípulos ficaram escandalizados – especialmente Judas, que murmurou: que desperdício! Se vendêssemos este perfume poderíamos angariar 300 denários para os pobres.

Jesus respondeu duramente à murmuração de Judas dizendo: 8Pois os pobres vocês sempre terão consigo, mas a mim vocês nem sempre terão.” O Mestre não estava dizendo que os discípulos deveriam desistir da missão integral. Ele está nos alertando para pelo menos duas armadilhas escondidas neste episódio: É possível “fazer a coisa certa pelo motivo errado[3]”; “É possível fazer a coisa certa, mas da maneira errada[4].

Jesus afinal despiu a verdadeira intenção do coração de Judas que, apesar de querer ajudar os pobres, foi capaz de vender seu Mestre por pouco mais de 10% do pretenso valor do perfume.

Três filosofias de vida propostas até agora

4:4 Então, vi que todo trabalho e toda destreza em obras provêm da inveja do homem contra o seu próximo. Também isto é vaidade e correr atrás do vento.

5 O tolo cruza as mãos, e come a sua; própria carne.

6 Melhor é um punhado de descanso do que ambas as mãos cheias de trabalho e correr atrás do vento.

7 Então, considerei outra vaidade debaixo do sol, 8 isto é, um homem sem ninguém, não tem filho nem irmã; contudo, não cessa de trabalhar, e seus olhos não se fartam de riquezas; e não diz: Para quem trabalho eu, se nego à minha alma os bens da vida? Também isto é vaidade e enfadonho trabalho.

Caricatura 1:Caricatura 2:Caricatura 3:
o competidor (v.4)o tolo indolente (v.5)o homem solitário (vv.7-8)

Embora, ao pé da letra, trate-se aqui da vida de um homem sem família, podemos imaginar que sua solidão pode não ser acidental – que ele não tenha amigos porque vive apenas para sua rotina. Mesmo que tenha esposa e filhos, ele tem pouquíssimo tempo para lhes dedicar, convencido de que está lutando em benefício deles, embora o seu coração esteja em outro lugar, dedicado e envolvido em seus projetos.

O ponto médio: No v. 6 fica a opinião do Koheleth. Ele não aprova a atitude de quem faz da vida competição ou rivalidade entre companheiros – pura atividade em busca de sucesso, poder e riquezas [dois punhados com trabalho e caça de vento]. Mas também não compactua com os preguiçosos [o tolo que cruza os braços]. Ele propõe uma via média: um punhado com tranquilidade. Este ideal está de acordo com as conclusões finais do Pregador. Neste caso faz todo o sentido o ditado de José Vilchez Lindéz: “Renato gastou saúde para ter dinheiro; depois gastou dinheiro para ter saúde; olhem-no ali, em seu ataúde sem dinheiro e sem saúde”[5].

Quais as reflexões e propostas do Koheleth?

Companheirismo

4:9Melhor é serem dois do que um, porque têm melhor paga do seu trabalho.

10 Porque se caírem, um levanta o companheiro; ai, porém, do que estiver só; pois, caindo, não haverá quem o levante.

11 Também, se dois dormirem juntos, eles se aquentarão; mas um só como se aquentará?

12 Se alguém quiser prevalecer contra um, os dois lhe resistirão; o cordão de três dobras não se rebenta com facilidade.

As ideias aqui são simples e diretas; aplicam-se a muitas formas de companheirismo, inclusive (embora não explicitamente, nem exclusivamente) ao casamento.

Para dar certo, há um preço óbvio a se pagar: a independência da pessoa [ou a sua ilusão]. O companheiro precisa consultar os interesses e a conveniência do outro, ouvir suas ideias, ajustar-se ao seu modo de andar e estilo de vida, e cumprir com as promessas.

Projeto de governo: manter-se no poder

4:13 Melhor é o jovem pobre e sábio do que o rei velho e insensato, que já não se deixa admoestar, 14ainda que aquele saia do cárcere para reinar ou nasça pobre no reino deste.

15 Vi todos os viventes que andam debaixo do sol com o jovem sucessor, que ficará em lugar do rei.

16 Era sem conta todo o povo que ele dominava; tampouco os que virão depois se hão de regozijar nele. Na verdade, que também isto é vaidade e correr atrás do vento.

Há muita semelhança com a relação e as próprias vidas de Davi e Saul. Apresenta as faltas de ambos os lados, começando com a teimosia do homem há muito tempo montado na sela, que já não tem mais a simpatia da nova geração.

Pode acontecer que um homem melhor o suplante e venha a ser melhor se tiver as qualidades certas, ainda que lhe falte idade ou posição, como o v.13a destaca. Finalmente, contudo, o jovem rei acaba seguindo o caminho do velho rei, não necessariamente ao cometer as mesmas falhas, mas simplesmente porque o tempo, assim como a inquietude dos homens, acabam por fazê-lo perder o interesse pela vida.

Concluindo com uma palavra de Ed René Kivitz: “Considerando que você vive em um mundo injusto, construa se der para construir. Fique rico se for possível, mas não deixe de se divertir, não caia na armadilha de correr atrás de dois punhados. Contente-se com um só e viva! Não deixe de se realizar como pessoa, só para ter mais do que seu cunhado ou vizinho. Não entre nessa ciranda competitiva do mercado e não tente ganhar sozinho. Reparta, compartilhe, invista no seu potencial de gerar riqueza e jamais descanse nos louros que você conseguiu gerar um dia.[6]

Notas:

[1] Deuteronômio 15:4-5 (NVI)

[2] Acompanhe todo o episódio em João 12:1-8

[3] Mateus 6:5-18 = orar é algo importantíssimo para o cristão… Jesus, porém, critica aquele que ora de-si para-si

[4] Efésios 4:15 = Paulo nos diz que devemos dizer a verdade em amor

[5] Eclesiastes ou Qohélet – Grande Comentário Bíblico

[6] Ed René Kivitz, O Livro mais mau-humorado da Bíblia, Ed Mundo Cristão, pg 80.