Espiritualidade: uma teologia para esperança







Não eram mais que dez horas da noite; estava frio, ventava e o escuro fazia o fogo que crepitava na fogueira no meio da mata ficar ainda mais vivo. Lembro-me bem desta fogueira, numa mata, ao sul de Minas Gerais em um acampamento de estudantes de teologia; estava sozinho olhando a fogueira e pensando em como o fogo queimava e consumia a madeira, nas vidas que aquecia e na escuridão que iluminava.

Hoje, lembrando dessa fogueira ainda sinto o calor provocado por suas chamas e penso no calor de homens e mulheres que anseiam ser mais santos, buscando justiça em meio à injustiça, tendo sede do amor do Pai principalmente quando se sentem abandonados, querendo servir e entregar vida, família, bens, saúde, vontade, mesmo não tendo assim tanta certeza de para onde se vai, quer ver implantado o reino de amor de Jesus, sua legítima e última vontade – “sereis minhas testemunhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra” (Atos 1.8) – o reino de Deus!

Tirando os olhos da fogueira e focalizando os santos e a situação em que se encontra a religiosidade evangélica brasileira, não posso deixar de me entristecer. Vejo homens e mulheres que têm suas vontades acima da vontade do Senhor da Igreja; onde morrer já é mais lucro, mas a vida tem mais a oferecer; onde justiça é apenas o nome que se dá para aquilo que se deseja que aconteça; onde vida, família, bens, saúde são apenas adereços na busca de uma felicidade solitária e egoísta onde o cumprimento da vontade tendo como ponto de referência não o outro, mas a si mesmo; sendo assim, a verdade é relativizada, cada um tem a sua própria e o meu ponto de vista é mais verdadeiro que dos outros e a partir dessa “verdade” eu crio bodes expiatórios para justificar os meus desacertos, desconsolos e decepções.

O tema da espiritualidade passa despercebido da grande maioria, pois provoca em alguns êxtases que tiram os seus pés da terra e o levam em uma verdadeira viagem astral; para outros, porém, a espiritualidade precisa passar por negações, verdadeiros autoflagelos, onde Deus não é glorificado, mas temido, e o sacrifício de Cristo é apenas um referencial teórico.

Como ser espiritual num mundo hedonista e marcado por uma espiritualidade hipócrita e farisaica? Os desafios que a nossa cultura brasileira impõe sobre a espiritualidade cristã são tremendos principalmente no que tange a separação entre uma espiritualidade sadia e a teologia. Tomás de Aquino, no fim da idade média, propõe que o relacionamento com Deus é algo separado do conhecimento mais intelectual, ou sistemático a seu respeito, levando a teologia para uma categoria que ela nunca pertenceu: apenas de ciência desprovida de relação íntima com Deus e incapaz de provocar no ser humano um avivamento amoroso em relação a Deus. Cria-se então este abismo.

Quero propor algumas pistas para enxergamos bíblica e teologicamente esta verdade:

Em primeiro lugar gostaria de pontuar que existe uma batalha espiritual onde a minha vida e a sua vida estão inseridas e de onde se apreende vários fatos.

  1. A guerra que está acontecendo não está fora do alcance da minha visão – ela é espiritual, mas acontece no aqui, no agora, entre nós, no meio de nossos relacionamentos e necessidades.
  2. O prêmio para as batalhas que acontecem nesta guerra geralmente passam pelo meu (e seu!) coração – ou seja, somos os alvos finais da batalha.
  3. E, por mais que tentemos, não podemos ser suíços e neutros nesta batalha.

Em segundo lugar a Palavra de Deus nos instrui várias coisas acerca de nossa espiritualidade e em como a desenvolveremos.

  1. É uma luta contra o mal estabelecido – Paulo em Efésios diz que lutamos contra os kosmokratoras (a expressão que ele usa em Efésios 6.11 e 12 é: “dominadores deste mundo tenebroso” que, traduzindo para uma realidade mais próxima do nosso entendimento, seriam aqueles seres que planejam e sabem como fazer o mal, tendo informações detalhadas para um planejamento estratégico do mal que envolve nossas vidas em suas íntimas considerações – são os burocratas do mundo maligno que fazem os planos de destruição de tudo o que é bem sobre a terra trazendo injustiças, desvios, corrupções pessoais e estruturais e tudo o que pode em longo prazo redundar em benefícios para que o mal prevaleça.
  2. A autoridade sobre este tipo de mal passa necessariamente pela autoridade que foi outorgada a Jesus através de sua obediência a Deus, onde ele submete-se para viver como ser humano, sofrendo suas dores e para pagar o preço pelo seu resgate, morrendo a morte destinada a cada um de nós – Lucas no capítulo 11 de seu evangelho narra que Jesus ensina que ele, o Mais Valente, toma a armadura (o termo aqui é panoplian – uma armadura especial que os generais estrategistas e líderes de guerra usavam) do Valente e divide os despojos com sua Igreja, revestindo esta Igreja, você, eu, cada um de nós, com o poder e autoridade sobre o mal.

Estas duas situações que coloquei aqui, teologicamente definidas como “batalha espiritual”, tendem a nos levar a um nível “avançado” de batalha, onde as armas não são imagináveis e toda a ação se passa num vácuo temporal (e espacial!) sem sentido, alienante e que não produzirá um efeito duradouro em nenhum de nós.

Vamos olhar para a Bíblia e entender a teologia de uma espiritualidade que é geradora de esperança e não de medo, desavenças e brigas paradoxais.

Em Efésios capítulo 6 temos talvez a noção mais real de que esta batalha envolve o mundo espiritual (vamos falar melhor: sobrenatural) com o nosso mundo carnal, físico, onde a vida acontece diante de nossos olhos. Ali somos instados a tomar a armadura de Deus, nos revestirmos com o poder do Senhor para batalhar a guerra que está em andamento, mas se olharmos com olhos atentos veremos que a batalha que supostamente deve acontecer no céu é descrita pelo próprio apóstolo como sendo uma batalha do dia-a-dia, dos relacionamentos, não verticalizada, seres humanos contra seres espirituais/sobrenaturais, mas a batalha se dá em meio à nossa vida, em nossos relacionamentos, acontece de forma horizontalizada e não é regionalizada, mas é geral, em todos os segmentos humanos.

Neste contexto de guerra é fácil cairmos em tentação de espiritualizarmos (ou talvez de levarmos a batalha para um terreno onde ela não poderá acontecer) toda a missão que nos está proposta, entretanto, Efésios 6:20 coloca nosso pé novamente no chão e devemos então enxergar corretamente isso – Paulo está numa prisão, algemado, limitado, sozinho, abandonado, sentindo-se vil e desprezado – mesmo assim ele deseja sair da prisão para abrir sua boca e proclamar o nome de Cristo entre as pessoas. Isso nos lembra então que a nossa luta não é contra carne e sangue, mas é pela libertação da carne e do sangue – é uma luta contra a injustiça, contra os falsos relacionamentos, contra a deturpação da verdade e conseqüente levante para o erro, contra a falsidade, contra a hipocrisia, e tudo isso num nível muito mais íntimo do que gostaríamos, porque a luta principalmente ocorre e acontece entre as paredes do meu e do seu coração – aí as batalhas são travadas e as vitórias alcançadas e as derrotas vividas no dia-a-dia da vida do cristão.

Oscar Cullmann diz que “já foi ganha a batalha decisiva. A guerra porém continua até o dia da vitória” (Salvation in History, citado no Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento).

Quando a dor chega e a resposta de Deus parece ou demorar ou ser negativa; quando a situação no casamento piora tanto que o divórcio parece ser a única solução viável; quando seu filho ou sua filha adolescente recusa-se a atender seus apelos e se joga num mundo de drogas, sexo e más companhias; quando um pai ou uma mãe olha para o filho recém-nascido e sabe que ele não terá muito tempo de vida; quando o seu amigo, aquele que comia na sua casa, de repente se volta contra você como se nunca o tivesse conhecido; quando uma criança se alimenta do lixo pois seus pais não têm como obter uma melhoria de vida suficiente para lhe dar um mínimo de dignidade e sobrevivência; quando… bem, quando tudo isso e muito mais acontece é que a guerra, a batalha realmente aparece. É aí, nesta horizontalidade normal de nossa vida, muitas vezes sofrida, injusta e apodrecida que a batalha acontece – é aí que vitórias são ganhas ou derrotas experimentadas e é aí que a armadura faz sentido, quando em meio a estas tão desalmadamente medonhas situações você e eu nos rendemos a Deus em um passo de fé, que não é um salto no escuro, mas uma certeza, uma convicção de que estamos revestidos com sua autoridade e poder para em meio aos nossos relacionamentos extrairmos daí vida e não morte, esperança e não desespero, saída e não becos fechados.

A verdadeira vitória na batalha espiritual se dará quando você e eu nos dispusermos a andar mais uma milha, a ceder, a tornar o outro o alvo de nosso amor e simpatia, quando eu concedo ao outro a honra de tratá-lo como eu gostaria de ser tratado… a verdadeira batalha espiritual então terá sido ganha e Deus glorificado!

Entendemos a realidade; sabemos o que a Bíblia diz a respeito; conseguimos esquematizar nosso pensamento e então é hora de uma teologia prática que redunde numa transformação da realidade que nos cerca, trazendo uma espiritualidade que denote esperança num mundo sofrido e sem Deus – é nossa vez; é vez de transformarmos a realidade!

Então, quando pensarmos em espiritualidade é necessário pensar em relacionamentos, em realidade, em limitações humanas, pecados vividos e revividos, certezas e dúvidas alentadas, mas acima de tudo é preciso pensar que Cristo desenvolveu a espiritualidade que deve ser o nosso padrão: ele construiu uma espiritualidade solidária e nós precisamos imitá-lo ao edificarmos sobre este fundamento solidário e cristocêntrico.

A espiritualidade em nossas vida deve gerar esperança e não apenas apegar-se ao celeste porvir, como se desse mundo Cristo não aproveitasse nada e não quisesse fazer nada – o mundo, os seres humanos, a natureza e tudo mais é CRIAÇÃO de Deus e, como tal, geme e suporta esperando a redenção, onde você e eu somos peças chaves para a libertação e a transformação dessa realidade, trazendo uma espiritualidade que tem os olhos fitos no céu e os pés firme no chão, onde o amor se revela no perdão e a natureza espiritual é mostrada através do conceder aos outros oportunidades e upgrades na compaixão e misericórdia – a espiritualidade de Jesus traz à nossa memória que preso… fostes me ver… nu… me vestistes… com sede… me deste de beber…

Que Deus seja glorificado aqui, agora, em nossa época, através da sua e da minha espiritualidade cristocêntrica e solidária!