Teologia e secularismo (1)

Como oferecer a esperança do Reino de Deus a pessoas secularizadas e decepcionadas com a igreja

Primeira parte – entendendo quem são os secularizados

Introdução

Antes de entender que cuidados devem ser aplicados àqueles que são intitulados como secularizados é necessário entender o que, tecnicamente denominaremos de secularismo; que tipo de pessoa ele produz e quais são as razões porque cresce o número de pessoas que traduzem suas vidas em paixões sem Deus ao redor.

É comum pensar que é necessário “acompanhar os tempos” para que o quotidiano geral se transforme em meu contemporâneo e assim ilude-se com a graça da mudança constante, o “não parâmetro”, onde o que vale é a mescla do que se aprendeu no passado (referencial teórico) com o que se vê hoje (exigência social) e a idealização que s espera de cada um (despersonificação processual), sem que essa mistura importe necessariamente vivenciar os conceitos abstraídos; tudo se torna apenas nebulosamente parecido – a verdade não mais existe como conceito norteador, mas olha-se para o todo social entende-se algo indefinido e inalcançável, preferindo a parte pois é assim que se chega ao “nosso todo.

Quando indagados a respeito da verdade geralmente se ouve: “Quero conhecer a verdade. A sua verdade. A minha verdade. A verdade deles, pois todas elas são diferentes óticas do que acontece e não há uma verdade absoluta”. Perde-se no tempo que verdade exista por si só; duvidar de tudo é a única maneira de interpretar e viver os dias de hoje. Há uma forte tendência no ser humano secularizado em negociar com a verdade. Mesmo aqueles que ainda aceitam o valor da mensagem bíblica como pressuposto para a verdade e condução moral e ética, no seu imaginário absolutos são perigosos e danosos e o relativismo torna-se a única alternativa.

Ao assumir o relativismo o secularizado quer deixar as responsabilidades que estar ao lado da verdade pode trazer – a verdade traz consigo a necessidade de assumir responsabilidades. Tolstoi sabia que “todos pensam em mudar a humanidade, mas ninguém pensa em mudar a si mesmo” (Leon Tolstoi. Citado por R. Foster em “Celebração da Disciplina”, Op.Cit.). Há todo um referencial teórico (passado) que traz sobre o ser humano moderno uma agonia – o que é do passado (mesmo passado recente) é muito antigo e ‘démodé’. A geração que experimenta o virtual não quer saber do passado, se projeta apenas para o futuro; nem o presente é mais real que o futuro. Marcos e vivências estabelecidas são normas de conduta para serem quebradas – quase uma evolução do conceito, portanto, não tem valor prático, mas apenas um referencial de como as “coisas” foram um dia.

Hedonismo e secularização

“Francis Shaeffer previa um tempo em que a aparência moral seria mais importante que os valores morais. Vivemos esta época hoje e podemos nitidamente percebê-la pelo rápido desenvolvimento do hedonismo em nosso meio. O ser humano nascido sob o sigma do hedonismo busca insaciavelmente sua própria felicidade, altruísmo passou a ser um termo vazio de significado e a integridade não expressa nenhum apelo pessoal.” (Lidório, 2007 – Despersofinificação Processual – não publicado)

O hedonismo é uma exigência social difusa onde o estabelecido é o “não estabelecimento” de nada que se imponha, que se exija, que se espere que não seja para o “eu”. O ser humano secularizado tem no hedonismo a razão de sua existência, procurando auto-satisfação, assim, olhar para o passado não ensina nada e nem mesmo para o presente como um tempo que tenha a dizer ou ensinar alguma coisa, o presente e o passado são apenas geradores de “um” futuro. O sentimento de individualismo vivido conjuntamente por muitos gera uma sociedade corporativista, pois o que importa é atingir os objetivos estabelecidos pela própria razão, mesmo que em detrimento de uma conduta aética; assim se cria a despersonificação processual, processo pelo qual o todo corporativista vai substituindo o censo de comunidade. Na inauguração da era do ‘RFID’ (Radio Frequency Identification – “Identificação por rádio freqüênciaRFID é uma Poderosa e Versátil Tecnologia para Identificar, Rastrear e Gerenciar uma Enorme Gama de Produtos, Documentos, Animais e Indivíduos, sem Contato e sem a Necessidade de um Campo Visual) onde um chip implantado poderá fornecer identificação, localização, monitoramento, nos dando a nítida sensação de que o termo aldeia global faz cada vez mais sentido, o sentimento isolacionista tende a ser substituído não pelo senso comunitário, mas pela necessidade corporativa e controladora. Assim o hedonismo incorpora-se à vida, pois a busca de soluções é mais recorrente que a busca de si mesmo, que é na verdade me afasta do outro, de quem, não quero absolutamente nada que me traga responsabilidade. No hedonismo é que se coloca entre parênteses valores que agregam o outro à minha vida.

Paul Tournier, em seu livro Mitos e Neuroses (Ultimato: 2002) diz:

Quando se pretende por valores entre parênteses, quando se vive como se eles não existissem, o natural é finalmente chegar a negá-los e viver segundo seu próprio gosto e prazer

Essa tentativa humana de mudar a conceituação da verdade, relativizando e movendo-se para um lugar neutro, quando não se quer viver os paradigmas e os marcos do seu referencial teórico, coloca tudo entre parênteses negando que possam realmente ter validade em nossos dias. Entretantoassim como se pode por os valores ‘entre parênteses’ e viver como se não existissem, também se pode adotar novos valores, fabricar os próprios valores” e então “a minha liberdade é o único fundamento dos valores e nada, absolutamente nada, justifica que eu adote um determinado valor, esta ou aquela escala de valores… E a minha liberdade me angustia por ser o fundamento sem fundamento dos valores” (TOUNIER, 2002).

Talvez isso não seja uma tentativa frontal de desmascarar conceitos e verdades tidas como absolutas, pois estes servem como parâmetro, não para a prática da vida, mas como referencial teórico; mesmo que se creia nos conceitos não se estabelece como necessário o viver de acordo com eles – há um abismo que separa aquilo que se acredita como referencial teórico e a prática diária. Poucos são (apesar de cada vez mais esse número aumente) os que frontalmente confrontam verdades estabelecidas, contrapondo com um estudo minucioso das partes, numa hermenêutica pós-moderna para que o todo faça sentido e seja inteligível, mesmo que eventualmente a análise de uma parte venha frontalmente negar outra ou outras – essa negação da parte não inviabiliza o todo na concepção da hermenêutica secularizada.

Modernidade e Pós-modernidade

A modernidade, que para muitos é tempo passado, tem sido criticada em seus pilares como a crença na Verdade e também na linearidade histórica rumo ao progresso. Substitui-se estes dogmas por valores menos categorizantes e consequemente menos fechados propondo logicamente outros valores. Talvez seja a tentativa de estabelecer as bases para o novo período que se denomina de pós-modernismo.

A hermenêutica entrópica da visão pós-moderna abala os sentidos apreendidos, que assombra a própria arte numa crise de representação destruindo os referenciais que norteavam o pensamento. Provavelmente vemos na substituição do registro do real (figurativismo) nas pinturas e nas artes em geral a partir de 1870 uma valorização sem referências: tudo vale. Todos os discursos são válidos. Isso resulta, já que não há mais padrões limitadores para representar a realidade, numa crise ética e também estética. Esta “destruição dos meus referenciais”, como bem expressa Paul Tournier – transforma a liberdade individual como único fundamento dos valores. (TOUNIER, 2002).

O contexto envolvido no “mundo” secularizado é mais complexo para que a igreja atue do que em outros contextos de missão e é necessário empreender uma leitura cultural séria, utilizando-se diversas ferramentas como a Antropologia, Sociologia, Economia, Psicologia, Pesquisas Geocensitárias, História, Marketing dentre outras para estabelecer a base do conhecimento do perfil, mas também da história, da movimentação intereligiosa antes mesmo da desistência da religião. Esta “leitura deve gerar uma inteligibilidade da vida social” (BORDIEU: 1963).

Regina Novaes, que desenvolveu a pesquisa Jovens do Rio (2001) demonstra em seu artigo que os secularizados expressam um “desenvolvimento da religiosidade sem vínculos institucionais” e uma “forte disposição para mudança de religião”. Em sua pesquisa ela entende que o secularismo é o “espírito da época” que grassa em todas as camadas dentro e fora das comunidades religiosas. Ela ainda afirma que “velhos e novos fundamentalismos passaram a conviver com a emergência de um mundo religioso plural em que cresce a presença de grupos e indivíduos cuja adesão religiosa permite rearranjos provisórios entre crenças e ritos sem fidelidades institucionais” (NOVAES, 2004).

Ao analisarmos, ainda que sucintamente, o Censo de 2000 do IBGE, juntamente com mais 3 pesquisas – de Novaes e Mello (Jovens do Rio – 2001); do Instituto de Cidadania em 2003 e do Ibase e Polis de 2004 enxergamos um crescimento daqueles que se auto designam como não tendo religião.

No ano de 2000 9,3% da população se declarava sem religião. Em 2003 cresceram para 11% e em 2004 aumentaram para 16,3% (Considerando os dados em conjunto das pesquisas citadas).

Olhando apenas para o Censo de 2000 do IBGE vê-se que 7,3% da população brasileira se declara sem religião – isso equivale a mais de 12 milhões de pessoas na época e que estão presentes em 5.560 municípios brasileiros, ou seja, quase todo território nacional. Entre 1991 e 2000 no Censo do IBGE há um dado no mínimo curioso – em 1.197 municípios brasileiros o grupo dos “sem religião” não existia em 1991, mas aparecem já em 2000.

Esta parece ser a cara destes novos ares que entram em cena tanto nas pesquisas como na vida cotidiana da sociedade brasileira.

Ernest Gellner diz:

O pós-modernismo é um movimento contemporâneo. É forte e está na moda. E sobretudo, não é completamente claro o que diabo ele é. Na verdade, a claridade não se encontra entre os seus principais atributos. Ele não apenas falha em praticar a claridade mas em ocasiões até a repudia abertamente… A influência do movimento pode ser discernida na Antropologia, nos estudos literários, filosofia… As noções de que tudo é um “texto”, que o material básico de textos, sociedades e quase tudo é significado, que significados estão aí para serem descodificados ou “desconstruidos”, que a noção de realidade objetiva é suspeita – tudo isto parece ser parte da atmosfera, ou nevoeiro, no qual o pós-modernismo floresce, ou que o pós-modernismo ajuda a espalhar. O pós-modernismo parece ser claramente favorável ao relativismo, tanto quanto ele é capaz de claridade alguma, e hostil à idéia de uma verdade única, exclusiva, objetiva, externa ou transcendente. A verdade é ilusiva, polimorfa, íntima, subjetiva… e provavelmente algumas outras coisas também. Simples é que ela não é… Tudo é significado e significado é tudo e a hermenêutica o seu profeta. Qualquer coisa que seja, é feita pelo significado conferido a ela… (GELLNER, 1992)

O significado, ou o resultado da coisa estabelece uma cortina atemporal que nos leva a redefinir a própria história e vida: resultados são cultuados, mas os valores que os geraram podem ser mascarados e assim, a produção de bens e serviços (em larga ou pequena escala) passou a ser a tecla que move a comunidade, mesmo que para isso se sacrifique a simplicidade da vida diária (tudo é muito complexo, desde o acordar com o som de acordes polifônicos do celular até a estrutura financeira dos investimentos na bolsa!); pelos objetivos traçados o ser humano passa hoje mais tempo na produção de sua vida do que em gozar a vida que almeja tanto construir e por isso o que se perde são os relacionamentos, eles se tornam superficiais – conhecemos mais pessoas menos profundamente. Há um grande crescimento de ansiedade que gera depressão e várias outras formas de psiquismo.

A compreensão destas formas de psiquismo deve, a partir de uma visão geral abordada, levar-nos à prática do alcance e cuidado para com os secularizados.

O secularizado é um ser humano criado por Deus, alvo do seu amor, objeto da sua ação redentora e, portanto, digno de ações compassivas e misericordiosas, para o cuidado e a transformação de suas estruturas e inserção no Reino de Deus.

Características de pessoas secularizadas

Tomando como base os conceitos sobre pessoas secularizadas extraído do texto de G. George Hunter III (Hunter, G. George III. How to reach secular people. Nashiville: Abingdon Press, 1992, 43-72 pp. Tópicos fornecidos em sala de aula na FTSA pelo Prof Dr. Jorge Henrique Barro em disciplina de Missão Urbana) poderemos estabelecer algumas características e diretrizes para o cuidado com os secularizados. Vejamos:

  1. É essencialmente alguém ignorante aos conceitos básicos do cristianismo. Eles encontram-se fora da ação ou da esfera de atuação da religião, portanto não recebem dela seus ensinamentos e muito menos compartilham com a mesma seus valores e verdades – apesar de não negá-los muitas vezes frontalmente age diametralmente opostos a idéia de vida estabelecida na e por meio da instituição religiosa.

  2. Está buscando vida diante da morte. A ênfase da vida do secularizado não está no celeste porvir (no além, céu, recompensas celestes e futuras), mas sim, em questões vivenciais que respondam a dúvidas e necessidades reais do aqui e do agora. Estão em busca de sentido para suas vidas.

  3. São pessoas mais conscientes de suas dúvidas que de suas culpas. Há uma busca de sentido para a vida e isso leva a questionamentos – geradores de dúvidas, mas como estão fora do eixo estabelecido e normatizado da religião não tem muitas culpas, pois os valores religiosos são apenas referenciais teóricos.

  4. Possuem uma imagem negativa da igreja. A igreja (ou igrejas) é vista como lugar de manipulação e alienação o que gera desconfiança e visão negativa generalizada. A identificação do movimento religioso cristão tendo mesmas bases e permeando os mesmos resultados faz o secularizado entender que o que vale é o resultado – a produção é o que mescla e transforma a vida e como o valor é determinado pelo “mercado”, qualquer ação pode ser válida para a “venda do produto” – daí o conceito da não confiança.

  5. Possuem múltiplas alienações. O secularizado não está à vontade em nenhuma instituição que o denomine. Geralmente o fato de não estar ligado a instituições denominadoras faz com que perca o sentimento de pertença, talvez o sentimento de não pertencer a lugar nenhum o leve a alienações múltiplas. Além disso, por causa da individualização e hedonismo ele está pronto para buscar situações que satisfaçam a si mesmo – assim se aliena mais ainda.

  6. São desconfiados. O secularizado levanta suspeita sobre muitas das ações humanas – não confiam geralmente em movimentos religiosos, pois só conseguem enxergar o corporativismo que alimenta estes setores.

  7. Geralmente possuem baixa auto-estima. O secularizado vive em um mundo que não sente como sendo seu – o seu sentimento é o de não pertencer. Está no meio da sociedade brasileira que ainda é massivamente religiosa e cristã, mas sente-se isolado das práticas e do cotidiano da vida brasileira que passa por muitos movimentos, situações, práticas e rituais religiosos. Esse isolamento consciente gera constantemente uma baixa auto-estima, pois está baseado num sentimento de não pertencer ao meio que se vive e não se aceito pelo grupo.

  8. No seu entendimento as forças da história estão “fora de controle”. Enxerga o corporativismo, a corrupção, a má gestão do dinheiro e destino públicos, as guerras em nome de Deus, os fanáticos religiosos que não se contentam com a religiosidade da paz, mas também da guerra e tudo isso em suas mentes gera uma forte sensação de que tudo está fora do controle – principalmente porque Deus não faz mais parte de sua história, seus valores e princípios não regem mais sua vida, não está debaixo da influência da religião e entendem que não há uma força motriz por trás (no meio) da história humana.

  9. No seu entendimento as pessoas estão fora de controle. Vivem num conflito por causa da instabilidade de sua própria personalidade e consideram que a psique humana como fora de controle. Seus sentimentos os levam a viver sem envolvimentos profundos e estes relacionamentos (por serem rasos e inconstantes) quase sempre acabam por fracassar, aumentando ainda a sensação de que não há nada que controle a vida.

  10. O secularizado não consegue “achar a porta”. Perderam a noção real da presença de uma porta ou ponte entre o seu mundo e a realidade cristã, justamente por se colocarem fora da influência desta; a falta de um conhecimento básico do cristianismo leva-os para longe das possibilidades de encontrar um sentido no que é oferecido do cristianismo no decorrer de suas vidas.

Assim entendemos um pouco sobre o fruto de socialização de nosso próprio século, sabendo que secularizados não são apenas pessoas que estão fora da nossa influência, mas muitos dos que se encontram em igrejas já estão caminhando para uma secularização ainda pior, pois fará o caminho sem que ninguém note ou sem ninguém para se importar ou impedir. Tenho o costume de dizer que muitos que estão ao nosso lado nas igrejas caminham a passos largos para a porta de saída sem que ninguém sequer perceba, quando chegam a porta, tentam ainda olhar para dentro e pedir socorro, com alguma atitude desesperada, mas já estão longe demais, indo para fora e quando vêem já saíram e não há quase ninguém que queira ter o trabalho de buscar ou mesmo de segurar em sua mão para que não se vá.

Entretanto nem tudo está perdido. Podemos fazer muita coisa para que isso se reverta. No próximo artigo iremos tratar do cuidado para com os secularizados e decepcionados.

Até lá!

Confira a continuação