O mal na cultura social

Teologia para entendimento e prática de uma evangelização integral, contextual e transformadora (3)

O mal na cultura social – comprometidos com uma teologia contextual

Leia também:

  1. Introdução

  2. O mal na poítica

Ao abordar o assunto da necessidade de uma teologia contextual gostaria que entendêssemos melhor o que quero dizer. Partido do pressuposto que o evangelho é transmitido a nós basicamente (não somente, mas em grande parte!) através da Palavra de Deus, pois esta expõe sobre a pessoa que é O EVANGELHO, Jesus, temos que entender então que uma teologia que seja contextual, para nossa época, que fale nossa linguagem e que entenda nossas questões é, em grande parte, teologia da contextualização da Bíblia em nosso meio – nossa cultura brasileira.

Lesslie Newbigin influenciou tremendamente a vida da igreja e da missiologia ao afirmar e ensinar que, esta, a Igreja apenas encontraria genuíno renovo (e sentido!) em sua vida e testemunho através de um novo encontro do evangelho com a cultura (Newbigin: 1984).

Assim sendo, para empreendermos o que chamo de contextualização da mensagem do evangelho em nosso dia que resultará numa prática de evangelização integral, contextual e transformadora e então prover as respostas para as perguntas missiológicas de hoje, precisamos urgentemente desenvolver uma análise sócio-cultural, que seja aplicável que nos posicione em meio a nossa cultura social genuinamente brasileira que deve gerar uma reflexão teológica séria daquilo que cremos ser ‘o evangelho’, que muitas vezes é confundido com uma cultural importada e trazida para o nosso meio como ‘santificada’ para então gerar uma visão para a Igreja e sua missão – a missão de transformação da sociedade sendo sal para a terra e luz para o mundo.

Nosso tempo não é mais o mesmo que aquele em que chegaram os missionários pioneiros de nossas mais antigas denominações evangélicas – o mundo mudou, o Brasil mudou. Nos últimos anos muitas pessoas frustradas com a religião e com a ciência transformaram sua maneira de pensar e agir, bem como criaram novas expectativas interesses e prioridades – muito diferente da época, por exemplo, em que aconteceu a Reforma Protestante e também do surgimento do movimento pentecostal. Há hoje um novo tempo, uma nova maneira de pensar e agir, há em todo canto um ‘sopro’ que leva aos cantos mais remotos insatisfação que causa quase sempre mudança de comportamento e nem sempre é para melhor – o hedonismo, nossa marca pela busca da felicidade do ser, mesmo que com isso joguemos fora altruísmo, amor pelo outro, preferir os outros em honra, sofrer o dano, etc.

Despreparados para enfrentar as novas pressões do secularismo, muitos crentes abraçaram novas verdades, se distanciaram de Deus, das Escrituras e causaram mal a si mesmos e a outros criando um ‘evangelho’ que só faz sentido, muitas vezes, dentro das quatro paredes de nossas ‘igrejas’.

Em nosso tempo a secularização e decepção com o sagrado têm gerado um contexto de extrema instabilidade, muita alienação e falta de esperança na sociedade moderna (pós-moderna? Hiper-moderna?). O racismo cresce a cada dia munindo também um classismo criando verdadeiras castas sociais, buracos na camada de vivência sócio-cultural através de uma discriminação generalizada, onde os que têm sobrepujam os que não têm e os que são muitas vezes ‘se esquecem’ de realmente ser! Os vícios têm alienado milhões, causado não só dependência, mas a necessidade de conhecer novas formas alienantes. A criminalidade, que para muitos é “fruto de uma sociedade corrupta e corruptora” avassala principalmente as grandes cidades, mas não deixa de estar presente até em sociedades mais ou menos rurais, gerada pela iniquidade que transparece não como mal, mas como libertação de uma vida repressora da religiosidade. A imoralidade grassa em meio à comunidade, família e vida, causando erosão nos valores e princípios antes marcadamente estabelecidos. O crescimento da (ou descobrimento de…) escravidão em vários cantos e recantos no país nos leva a pensar nas prisões onde homens e mulheres, culpados e inocentes, convivem na maior escola de criminalidade que o ser humano criou – as cadeias. As artes, o entretenimento, a literatura estão tremendamente contaminados com obscenidade, destruição de valores antes estabelecidos e marcas (e marcos!) hoje mal definidos. Na saúde, o ser humano inserido na sociedade moderna, luta contra grandes epidemias como AIDS e outras, mas também contra a injustiça do próprio sistema que beneficia, exclui e danosamente leva para uma sobrevida aqueles que não possuem.

A igreja brasileira sofreu durante bastante tempo com esta exclusão da cultura própria da sua prática religiosa, como se tudo o que fosse genuinamente brasileiro fosse carnal, pecaminoso e contaminante. Na década de 50, violão não era instrumento de adoração, mas de boemia; depois, a guitarra instrumento do diabo, o “pai” do rock; a bateria trazia desarmonia ao culto como barulho inadequado; as palmas e alegria não deviam ser demonstradas com muita ênfase, devido a emocionalismo em excesso… e assim, as músicas, o ritmo, a vida, os costumes, as muitas manifestações culturais eram tidas (e ainda são nos dias de hoje em muitas lugares!) como demoníacas e contrárias as práticas bíbicas.

O evangelho é supracultural, ou seja, ele é aplicável a qualquer pessoa em qualquer contexto cultural e isso deveria servir para nós como bússola para uma igreja evangélica culturalmente definida e socialmente relevante.

Entender, portanto, uma teologia contextual e transformadora é saber que não adianta impor nossa maneira de pensar e interpretar o evangelho a outros, como que valorizando apenas a maneira como pensamos, sentimos e vivemos o evangelho – Deus não é limitado à Igreja, muito menos a nossa igreja local ou denominacional.

Ronaldo Lidório, em seu curso: Teologia Bíblica da Contextualização (Faculdade Teológica Sul Americana) afirma que:

“Quando Hesselgrave afirma que contextualizar é tentar comunicar a mensagem, trabalho, Palavra e desejo de Deus de forma fiel à Sua Revelação e de maneira significante e aplicável nos distintos contextos, seja cultural ou existencial, ele expõe um desafio à Igreja de Cristo: comunicar o Evangelho de forma teologicamente fiel e ao mesmo tempo humanamente inteligível e relevante. E este talvez seja o maior desafio de estudo e compreensão quando tratamos da teologia da contextualização. Historicamente, a ausência de uma teologia bíblica de contextualização tem gerado duas conseqüências desastrosas no movimento missionário mundial: o sincretismo religioso e o nominalismo evangélico”.

A mistura da religiosidade e a vida nominal cristã são resultados de uma contextualização insuficientes.

Quando afirma a necessidade de contextualização não estou apenas dizendo que há uma série de necessidades humanas que precisam ser supridas, numa cadeia desastrosa e aviltante. Isso é humanismo. Apenas responder sociologicamente as necessidades humanas nos transformaria (a Igreja) em um clube social ou uma sociedade de amparo a necessidades, de auto-ajuda.

É necessário analisarmos a realidade para extrair delas as reais necessidades de nosso contexto social e cultural – entender a realidade e não somente criticá-la. Esse entendimento, no entanto, deve gerar em nós temor ante a Palavra, que é a única que pode responder coerentemente aos anseios e desejos de Deus para a cultura social brasileira.

Ronaldo Lidório ainda afirma em seu curso de Teologia da Contextualização:

“Soren Kierkegaard, com seu relativismo pragmático, propôs o entendimento da verdade a partir da interpretação individual, sem conceitos absolutos e dogmáticos. Willian James em 1907 lançou a base para o “movimento de contextualização filosófica e teológica” defendendo a atualização teológica a partir da necessidade sócio-cultural ou lingüística. Na mesma linha Rudolf Bultmann defendeu a contextualização filosófica do Evangelho mitificando tudo aquilo que não fosse relevante ao homem moderno em seu próprio contexto. Estes e outros pensadores influenciaram a base conceitual da contextualização desenvolvendo uma nova proposta: não há verdade dogmática, supracultural e cosmicamente aplicável. A verdade é individual e como tal deve ser compreendida e aplicada de acordo com o molde receptor”

Não devemos entender que a Palavra deve ser ‘moldada’ para ser aceita social e culturalmente, mas sim que a cultura e a sociedade precisam ter como moldes a Palavra de Deus, que é supracultural e, portanto, pode e deve ser aplicada, explicada e vivida em qualquer contexto cultural.

Em 1974, em Lausanne, Suiça, líderes do mundo inteiro reuniram-se para discutir teológica e missiologicamente a maneira de pensar sobre o Evangelho e este Pacto de Lausanne (como ficou conhecido) declara em sua afirmação sobre Evangelização e cultura:

“O desenvolvimento de estratégias para a evangelização mundial requer metodologia nova e criativa. Com a bênção de Deus, o resultado será o surgimento de igrejas profundamente enraizadas em Cristo e estreitamente relacionadas com a cultura local. A cultura deve sempre ser julgada e provada pelas Escrituras. Porque o homem é criatura de Deus, parte de sua cultura é rica em beleza e em bondade; porque ele experimentou a queda, toda a sua cultura está manchada pelo pecado, e parte dela é demoníaca. O evangelho não pressupõe a superioridade de uma cultura sobre a outra, mas avalia todas elas segundo o seu próprio critério de verdade e justiça, e insiste na aceitação de valores morais absolutos, em todas as culturas. As missões muitas vezes têm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha, e as igrejas, por vezes, têm ficado submissas aos ditames de uma determinada cultura, em vez de às Escrituras. Os evangelistas de Cristo têm de, humildemente, procurar esvaziar-se de tudo, exceto de sua autenticidade pessoal, a fim de se tornarem servos dos outros, e as igrejas têm de procurar transformar e enriquecer a cultura; tudo para a glória de Deus”. (In Artigos, www.gedeon.lidorio.com.br)

Assim sendo quero propor práticas contextuais que exercerão influência na maneira como vivemos em igreja. Estas práticas devem ser a base de qualquer ministério que deseja ser relevante e contextual em nosso país, em nosso tempo. Vejamos:

  1. É necessário sair do estigma da “catequese” simplesmente para uma atuação ministerial que transmita os valores e princípios cristãos sem proselitismo, baseados em relacionamento pessoais, através de redes sociais de envolvimento, onde possamos não somente ‘converter’ pessoas, mas influenciá-las em suas decisões e práticas sócio-culturais, pensando no bemda comunidade e na construção da justiça;
  2. Precisamos desenvolver ações que não somente acusem as pessoas de seus erros ou mostrem o quão errado está o mundo – isso todo mundo sabe, mas ajudar as pessoas a encontrar significados para a própria vida, respondendo suas dúvidas com sinceridade mais que apontando suas culpas. A ‘busca do sentido’ para a vida é algo que todo ser humano tem, independente da sua cultura local ou meio social. Evangelizar contextualmente é também fazer sentido na vida das pessoas, mesmo que elas não façam sentido a si mesmo;
  3. O envolvimento com as pessoas, com sua vida, com seus dilemas familiares, sociais, religiosos, sentimentais etc nos dará material para desenvolvermos uma cadeia de confiança e está confiança gerada será primordial para o evangelismo;
  4. Providenciar formas de auxiliar pessoas em sua baixa auto-estima, cuidando delas, aconselhando, orientando e/ou providenciando ajuda profissional regular é uma forma muito boa de cuidar das pessoas ao nosso redor e assim evangelizar não a partir de conceitos abstratos para elas, mas de situações do dia a dia, da rotina, das suas necessidades, assim como Jesus fazia sempre;
  5. Oferecer formas culturalmente apropriadas de ministérios cristãos; o trabalho religioso tradicional, cheio de rituais e desprovido de ambientação cultural ativa não cativa geralmente aqueles que estão ‘fora da igreja’. Os melhores ministérios são aqueles que contextualizam a mensagem e incultura a vivência do grupo e que trazem Cristo a vida comum e ordinária do ser humano e não simplesmente realizem atividades muitas vezes inacessíveis para estes;
  6. Devemos nos forçar a entender que o engajamento das pessoas deve ser em sua própria realidade e não num mundo ‘criado’ pela igreja ou pelo grupo. Todos nós estamos em busca de sentido para nossa vida e não uma substituição por outra vida que não faça mais sentido onde e com quem vivemos num processo de re-significação dos conceitos, do ambiente, da vida, dos relacionamentos, minimizando-se assim efeitos de mudanças muitas vezes desnecessárias.

Muitas vezes me pergunto como seria uma igreja em que nossa cultura realmente tivesse sido respeitada e integrada ao culto, à liturgia, à maneira de vivermos a vida cristã. Muito do que temos em nossa maneira de viver o evangelho é uma parca imitação de outras culturas, onde predominam, ora um rigor ascético que gera mais hipocrisia que santidade, ora um liberalismo na teologia e na vida que joga tudo no caldeirão do universalismo.

Infelizmente pensamos numa vida social e culturalmente definida mais em termos musicais e artísticos e insistimos (como se isso fosse o todo!) que as músicas devem ter características brasileiras, as danças etc, mas não é só isso. Somos um povo rico, rico em sua maneira de viver a vida, rico em sua cultura relacional, rico nas histórias, nas maneiras de explicar a vida em meio a elas.

É ai que reside basicamente o mal em nossa cultura social – ele nos faz ver que tudo isso, tudo o que temos ou tudo o que somos é sujo, impuro, profano.

Nossa cultura tem se transformado cada dia mais em uma cultura hedonista onde tudo precisa resultar em ganhos significativos – é preciso trazer: fama, conhecimento, riqueza, bem estar pessoal, satisfação de desejos etc. A perseverança diante de situações difíceis gera um desânimo completo a partir da necessidade de perseverar. Encontramos na palavra perseverança uma barreira para a continuidade – no grego a palavra (que é proskartereo) “significa dar continuidade a uma ação após intenso esforço” – não indica uma ação óbvia mas é uma temática de permanecer (ou perseverar) a todo e qualquer custo. A perseverança que gera um desconforto ou mesmo uma necessidade de permanência em um determinado pensamento ou posicionamento é rechaçada como antiquada, fora de propósito ou mesmo uma interpretação errônea.

O ser humano moderno crê firmemente naquilo que aprendeu desde sua tenra infância, quando criança em casa ou na sua igreja ou mesmo com bons mestres que lhe incutiam a boa moral e ética. Boa é a sua fé. Alentamos o fato de enxergarmos um pouco além do que vemos, na teologia, na Bíblia e até em nossa fala diária. Quando saímos do âmbito da prédica e nos adentramos na razão de ser da vida, no dia-a-dia, de nossas decisões, de nossa vontade, de nossos acertos com a vida, quer seja ela sentimental, profissional, religiosa ou pessoal, enxergamos, porém que esta verdade não é vivida e que mentimos ao afirmá-la.

A subjetividade tomou conta de nossa vida; retirou dela todo critério objetivo; mais que isso ainda arrancou de nossa vida o sonho, a poesia, a contemplação e assim, sem pararmos para contemplar, apenas deixamos nossa vida ser medida pelo que queremos, pelo que desejamos, pelo que lutamos, pelo que fazemos, pelos resultados – essa fascinação norte americana por resultados toma conta da igreja e números passaram a ser sinônimo de bênção e de caminho acertado.

Apesar de entendermos que cultura, principalmente a brasileira, é feita, ou foi formada a partir de muitas fontes, várias influências e grande parte da vivência do povo brasileiro devemos também reconhecer que o relativismo moral (cultural?) tem se fincado por causa das “leis” criadas nesta própria vivência. Não há de se entender a moralidade ou a cultura de forma relativa, ou seja como se o bem ou o mal fossem apenas o socialmente aprovados ou negados em cada cultura, pois assim teremos dificuldade em contestar o que se aprova e jamais poderia se questionar qualquer valor cultural. Algumas atitudes, mesmo que socialmente aprovadas não são práticas desejáveis em qualquer sociedade – o fato do povo brasileiro valorizar os relacionamentos mais que os valores que seguem e mudá-los (os valores) de acordo com as necessidades relacionais que tem infere diretamente neste conceito do relativismo cultural e assim podemos (e devemos!) questionar o fato de que a “vantagem deve estar presente em todos os resultados dos meus atos” – devo levar vantagem em tudo.

Faço a mim e a você algumas perguntas puramente existenciais nesta hora: para onde estamos indo como Igreja? Qual é o nosso destino em meio a nossa cultura brasileira? Porque tudo o que vem de fora tem mais valor que o que temos aqui?

Até quando deixaremos que o mal triunfe em meio as nossas estruturas ao deixarmos de influenciar o nosso contexto com o sal e a luz do qual, Cristo disse que éramos para ser?

Que Deus nos ajude.

Leia agora a Parte 4

Notas:

Referências:

Lidório, Ronaldo A. Teologia Bíblica da Contextualização. Curso online – FTSA

Newbigin, Lesslie. 1984. The Other Side of 1984: The Gospel and Western Culture. Geneva: WCC Publications

Pacto de Lausanne – http://www.gedeon.lidorio.com.br/v1/index.php/artigos/54-pacto-de-lausanne