O mal na religiosidade

Teologia para entendimento e prática de uma evangelização integral, contextual e transformadora (4)

O mal na religiosidade – comprometidos com uma teologia da espiritualidade

Leia também:

  1. Introdução

  2. O mal na poítica
  3. O mal na cultura social

Por espiritualidade não gostaria de pensar no que comumente se entende por isso, um movimento individualizado, verticalizado, onde em “êxtases” ou fora deles obtemos nossa “comunhão com Deus”. Essa espiritualidade é mero substituto da verdadeira espiritualidade que é gerada sim pela intimidade, mas que gera compromisso e não utilitarismo. A intimidade com Deus está sendo substituída por um conceito de “comunhão desprovida de relacionamento profundo”, uma espiritualidade aproveitadora e utilitarista, onde Deus é o “grande provedor”.

O cristianismo e a cristandade cada dia mais estão separados e parece não tão distante o dia em que as palavras do apóstolo João no Apocalipse, em que Jesus, do lado de fora, bate na porta e diz querer ter comunhão com sua igreja, mas esta nem o percebe. Parece que estamos criando um cristianismo onde Cristo não é mais o centro, mas o ser humano e suas necessidades e desejos.

O ser humano moderno, vivendo sobre a égide do hedonismo extrai daí o relativismo, pois transforma todos os seus parâmetros em meras referências religiosas que necessariamente não tem a ver com a vida comum. O senso comum da vida religiosa tem sido modificado alterando o centro dela – a divindade não está mais no centro, no lugar da adoração, mas a necessidade pessoal, individual assume o controle. Os fiéis se transformam em meros clientes, ora satisfeitos, ora não, e assim modificam o status da religião e a coloca como produto a ser consumido – daí, a idolatria toma lugar, onde sou eu o centro da religião e não aquele ser que eu deveria adorar. Qualquer coisa que retire Deus do centro da vida é idolatria. A espiritualidade toma conta até mesmo da vida agnóstica, pois o que vale é ter fé. A fé simplesmente como fim em si mesma – a na – apegue-se a sua fé, diriam alguns. A sensação da perda de uma religiosidade mais profunda leva o ser humano moderno para o ocultismo e nominalismo; perguntas sem respostas, formalismo religioso, legalismo e várias formas de tradicionalismo religioso levam a incoerência e muitas vezes até a violência, perseguição, desprezo, afastamento e reclusão. A religião tem sido em diversos sentidos uma das formas de opressão do ser humano, onde Deus é substituído por tiranos que se auto intitulam governantes com uma nova visão a ser implantada.

Alguns são quase intimistas orientais, onde nossa espiritualidade é centrada nas meditações e arrebatamentos, muito contemplativa e vai como um desejo de fazer-se galgar novas realidades e aos ‘nirvanas’ de percepção do cosmos. Essa ‘modalidade’ tem sido descontinuada pela pura falta de ‘tempo para contemplação’ em nossos ambientes pós-modernos e urbanos.

Existem aqueles que são mais legalistas e intransigentes. Transformam a sua relação com Deus num comportamento intocável e intangível levando a espiritualidade a um nível não assimilável, mas puramente comportamental, legalista.

Outros já tendem a separar o material do espiritual e criam uma espiritualidade dicotômica e abstrata. Trabalham os conceitos sem ligá-los à realidade.

Hoje, encontramos uma multifacetada gama de ‘espiritualidades’, mas a grande maioria baseia-a em quatro principais pilares:

É verticalista – pensa apenas numa espiritualidade que tem contato com o ‘divino’ e portanto Deus é a única possibilidade de desenvolvimento dessa espiritualidade, assim ela se torna intimista, pois ‘dentro’ é o lugar que reside a espiritualidade, em ‘meu’ íntimo e também por isso ela é sobrenatural, pois nada do que é tangível, palpável e natural podem fazer parte da espiritulidade, apenas o que é do Espírito, de cima, do céu desembocando numa espiritualidade dicotômica onde o santo, o sagrado é abstrato, subjetivo e o material, todo ele matéria a ser destruída é encarada apenas como profano.

Ao contrário, na igreja primitiva vemos uma espiritualidade mais baseada em princípios cristãos, logo íntima, mas não intimista. Não negava o íntimo, sabendo que todos têm este desejo de interiorização de relacionamentos e que é internamente que processamos mudanças, atitudes e pensamentos; também não era uma espiritualidade solitária, pois promovia o ajuntamento comunitário e era carismática pois se abria para o convívio com o sobrenatural na forma de sinais, prodígios e dons, mas com os pés no chão estava a serviço dos pobre, era social.

Nossa espiritualidade tem sido desencarnada e numa mescla de espiritualismos com legalismos criamos uma ‘máscara’ extrapolamos a fé e criamos novas maneiras de se enxergar expressões cúlticas como se isso fosse o centro de nossa espiritualidade.

Mais do que um êxtase, esta espiritualidade encarnada deve gerar serviço ao outro – ela precisa ser horizontalizada também, pois Deus é e vai continuar sendo o centro de nossa espiritualidade, mas é o outro, o próximo quem receberá a carga da vida e criará elos que farão verdadeiras as fases da vida.

O serviço, a diakonia é a forma melhor encontrada por Cristo para demonstrar sua espiritualidade.

Em completa obediência a Deus, Jesus resolve limitar-se como ser humano, criando daí uma necessidade muito forte da presença do Espírito Santo dentro do seu corpo e vida, para que a partir desse Espírito tudo viesse acontecer.

Paulo afirma em Filipenses 2.4-5, que nossas atitudes devem ser as mesmas que Cristo teve; ele diz: “Cada um cuide, não somente dos seus interesses, mas também dos interesses dos outros. Seja a atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus”.

Está incluído nestas poucas palavras o cerne da ‘diakonia’ – o serviço ao interesse do outro como Cristo fez, mas o que me chama atenção neste texto é justamente que não somente devemos ‘fazer’ como Cristo fez, mas também ter o mesmo ‘sentimento’, ‘atitude’ que ele teve. A força do serviço não está no ato de servir, mas num coração maleável, servo, amável que faz o que faz não porque é necessário apenas, mas também porque ama o alvo do seu ‘servir’ e quer glorificar a Deus com tudo isso.

O ato de cuidarmos do outro (‘diakonia’ – serviço) responde ao que Deus fez em primeiro lugar: ele amou e decidiu servir.

O ato primeiro, de Deus, que exige de nós uma resposta diaconal é justamente o amor com que nos alcança em primeiro lugar – “Nisto consiste o amor: não em que nós tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou e enviou o seu Filho como propiciação pelos nossos pecados” (1 Jo 4.10).

Deus nos buscou antes de o buscarmos e através de Jesus é quem nos serve (diaconia) em primeiro lugar, pois o próprio Cristo afirma através de Marcos que “o próprio FILHO DO HOMEM não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida em resgate por muitos” (Mc 10.43-45).

Esse buscar de Deus por nós revela uma necessidade do Senhor em relacionar-se com o ser humano.

Creio não existir um texto bíblico onde a espiritualidade de Jesus fica mais evidente do que em Filipenses:

“Tende em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.” (Fp 2.5-11).

Quando a Palavra do Senhor nos diz que Cristo se esvaziou não devemos entender como ele tendo perdido alguma coisa, mas sim que ele deixa de agir exclusivamente como Deus e encarna-se para, na dependência do Espírito Santo de Deus, agir 100% como ser humano. A teoria cinótica do esvaziamento de Deus nada tem a ver com esse verso – que é chamada de Kenosis. O que a meu ver está sendo tratado aqui é justamente Paulo trazendo a memória o hino do servo em Isaías – quando o esvaziar-se até a morte pode ser considerado como Jesus tendo derramado a sua vida na morte (Is 53.12).

Podemos concluir então que ser espiritual na vida de Cristo raramente tem a ver com o seu lado ‘espiritual’, mas sim com o seu lado humano, verticalizado na obediência, mas horizontalizado na comunhão com o ser humano a quem transfere todo o seu amor e sacrifício e de quem herda toda a dor depositada na cruz, em seu completo esvaziamento até a morte. Era uma espiritualidade realista, onde Deus e Jesus entraram em ‘acordo’ – cada um fazendo sua parte: Deus assentado no seu trono, reinando absoluto, segurando em sua mão toda nossa história, ainda inacabada, pois somente Cristo tema prerrogativa assumida de encerrar esta história. Cristo tem como centro do seu ministério cristão e da sua espiritualidade a obediência a Deus e caminha em direção a cruz para pagar o preço. A nossa missão então, está sustentada perante estas duas realidades e consiste-se em nos relacionarmos com Deus em obediência ao Cordeiro e através dele, sermos intimados pelo Senhor a prestar um serviço diaconal para todos aqueles que se encontram ao nosso redor, numa espiritualidade centrada na Palavra de Cristo, no poder do Espírito e com os pés no chão, sofrendo as dores e sabendo-se responsável pela restauração e reconciliação de muito da criação de Deus com ele mesmo.

Assim como a teologia, nossa espiritualidade também precisa desembocar na missiologia, porque, senão ela terá um fim em si mesmo e deixará de ser espiritualidade para virar um ritual repetitivo e inútil.

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