O Colega

– Alô…

– Alô, Fernando! – dizia do outro lado uma voz insistente, quase desesperada.

Já devia ser uma hora da manhã quando o telefone tocou. Fernando sentia-se cansado, não queria atender. De mais a mais, telefonemas depois de meia-noite costumam trazer uma certa dose de mistério. Notícia ruim…? Aviso urgente…? Parente de outra cidade…? Munindo-se de forças para agir contra a própria vontade, levantou-se para ver o que era.

O fato é que Fernando, havia um bom tempo, vinha investindo toda sua energia emocional na conversão de um colega de trabalho. Queria vê-lo salvo e vinha orando por ele nos últimos nove meses – engravidara da idéia. Sujeito de temperamento extrovertido e gozador, o colega era aquele tipo de cara desbocado, sempre com piadinhas e comentários picantes, o contrário de Fernando, indivíduo recatado, meio tímido, cheio de reservas. Um incidente ocorrido quase sem querer fizera com que Fernando obtivesse o respeito do colega. Uma situação em que o nosso personagem partira em defesa do companheiro irreverente, evitando uma injustiça a ser praticada contra ele. A coisa ocorrera no ano anterior e fora a porta para que uma espécie de amizade surgisse. Fernando, embora totalmente diferente do colega, a partir dali começara a ganhar um pouco de espaço com este e, cristão sincero que era, pediu a Deus a salvação do quase amigo.

Com o tempo, surgiu a oportunidade de testemunhar e, mais tarde, até os convites para ir à igreja. Na primeira vez, foi um choque: “Nem pensar, meu camarada! Eu lá tenho cara de igreja?! Domingo é dia de futebol e cerveja!”. Mas outras oportunidades e outros incidentes depois começaram a tornar a possibilidade mais real. E não é que o colega acabou aceitando o convite mesmo…?!

Ocorre que, justamente no dia em que o rapaz foi à igreja, a pregação estava a cargo do pastor emérito, um americano velhinho que, apesar de anos no Brasil, falava com dificuldade o português. Confundia gêneros (“aquela homem”, “um pessoa”), não conseguia pronunciar palavras terminadas em “ão” (dizia “pom”, para “pão”; “Catalon”, para “Catalão”), isso para não dizer das frases mal adaptadas do inglês para a nossa língua, além das piadinhas inocentes que não caem na graça dos brasileiros.

Nosso herói não conseguia esconder a vergonha e a frustração. Achava que o sermão estava “ralo”, fraco, mal conduzido, sem profundidade. E o homem havia fundado a igreja, lá pelos anos 50s. Era aquele tipo de velhinho do qual todos gostavam. Havia ajudado muita gente, devia ter sido forte e dinâmico quando jovem, mas, sinceramente… seria melhor, naquela noite, que qualquer um, menos o emérito, estivesse pregando. Pensava na dificuldade que tivera em trazer o rapaz (“Domingo é dia de futebol e cerveja!”), o cara tinha vindo depois de tanta luta – e agora “aquela homem” estava pregando!!!

O culto rolava, e Fernando, de vez em quando olhava com o rabo do olho pro lado, tentando ler alguma reação no rosto do colega. Nada! E o tempo passando… entre um “irmon” e um “salvassom”, um adolescente próximo abria a boca de sono, ao mesmo tempo em que o rabo de olho de nosso personagem parecia criar calo. Nessas alturas, entre um olhar enviezado e outro, nosso amigo já estava quase orando para que o culto acabasse logo; mas, estranhamente, o velhinho parecia fleumaticamente animado e conduzia uma mensagem aparentemente interminável. Pra piorar, fazia calor e, excepcionalmente, não havia classe de crianças.

Como tudo um dia tem que acabar, para alívio de Fernando, o culto acabou. O pastor emérito fez um apelo no final da mensagem, mas ninguém foi à frente. Fernando, não conseguindo disfarçar a sengracez, despediu-se do colega, que não fez qualquer comentário sobre coisa alguma que presenciara na igreja. A mulher de Fernando, tentando ser simpática, ainda o convidou a participar do cafezinho com pão de queijo, explicou que a cantina ia abrir, mas não foi feliz. Por fim, estendeu o convite para que ele voltasse outra vez. Algumas poucas pessoas cumprimentaram o rapaz, e foi só. O visitante, que estava de moto, tratou de enfiar a cabeça no capacete, deu um tchau com as mãos já dentro das luvas e arrancou pela avenida.

Quando o telefone tocou, já devia ser uma hora da manhã. Até que Fernando atendesse, tocou várias vezes.

– Alô…

– Alô, Fernando! – dizia do outro lado uma voz insistente, quase desesperada…

Surpresa: era o colega, que, com voz embargada e um jeito contrito, perguntava o que fazer para ouvir outra vez aquele velhinho. Ao ouvi-lo, o rapaz se lembrara do falecido pai (ou, quem sabe, do Pai), da infância, da igreja e da Herança que deixara pra trás. E, no meio de suas dúvidas, resolvera telefonar e fazer a pergunta que tanto o perseguia, apesar do adiantado da hora: “Será que posso voltar?”

por Zazo, o Nego