Teologia contra indolência e letargia

Por que somos alheios ao mundo e às pessoas?

Minha esposa ontem levantou comigo uma questão: porque os seres humanos acabam se importando menos com os outros e vivem voltados para dentro de si mesmos com um egoísmo que beira a bestialidade, desprezando pessoas, situações, problemas, minimizando dores de outros e enxergando a si mesmos como centro de tudo?

Esse é um problema antigo e perdurará para sempre em meio à nossa humanidade decaída.

Esse foi o grande problema da queda da humanidade no passado, relatado na história do Gênesis. Antropologicamente, esta história consta de praticamente todas as nações e culturas novas ou antigas existentes no mundo.

Em meio a povos africanos há sempre a história de uma ilha, ou uma mata, onde o ser humano habitava em paz e tranqüilo em meio aos deuses, mas o egoísmo e as más escolhas sempre os levavam para longe do ‘deus bom’ e ficavam imersos em si mesmos, vivendo agora sobre a égide do ‘deus mau’ e entregues ao sofrimento, à dor e a solidão. Minha experiência em países africanos e em meio a indígenas brasileiros tem mostrado esta realidade.

Nossa época, nosso tempo não é diferente e nossas escolhas também não. A história se repete o tempo todo. Escolhemos o mau sempre e mesmo quando escolhemos o bem parece que o fazemos para nos beneficiar, numa troca, numa barganha com o ‘divino’ de tal forma que sejamos abençoados porque fizemos o que devíamos.

Somos egoístas e isso nos impele à letargia e a indolência em relação ao sofrimento alheio.

Escrevendo para pessoas da sociedade greco-romana na cidade de Corinto, Paulo, mostrava entender que o desenvolvimento do ser humano dependia das suas relações verticais e horizontais e da sua interação com o seu meio de vivência – ele expressa que a vida natural precisa de desenvolvimento, de crescimento e que esta tem seus estágios, sendo saudável viver dentro deles como também é esperado a não resistência para as mudanças que ocorrem por causa dos descobrimentos nos estágios; ele diz no capítulo 13 da sua primeira carta aos coríntios:

Houve uma época em minha vida que eu era imaturo e pensava, falava e agia como uma criança o faz. Com o decorrer do tempo cresci e amadureci. Entendi que havia em mim muitas infantilidades e criancices. Hoje entendo que devo agir como adulto e entendo as coisas do ponto de vista de quem já cresceu e está em constante crescimento. Deste mesmo modo, o conhecimento e intimidade que buscamos em Deus é ainda muito limitado, mas irei crescer e chegar um dia que conhecerei meu caminho melhor do que conhecia antes, pois Deus me fará conhecer a mim mesmo mais profundamente.

O argumento que ele desenvolve é que aquelas pessoas da comunidade de Corinto ainda eram imaturas e precisavam passar para outros estágios, pois suas práticas em relação aos outros demonstravam incapacidade para assimilar princípios morais e éticos da vida adulta.

Ele trata então, resumidamente, de pessoas que precisavam AMADURECER em sem desenvolvimento da fé.

Tillich, famoso teólogo, afirma:

“fé não pode ser criada pelos processos do intelecto ou por esforços da vontade ou por movimentos emocionais. Mas, – e esse é o segundo aspecto – a fé abarca tudo isto dentro de si mesma, unindo-o e sujeitando-o ao poder transformador de Deus. Isso envolve e confirma a verdade teológica básica de que na relação com Deus tudo procede de Deus. O espírito humano não pode chegar até aquele que é último, isto é, aquilo em cuja direção ele autotranscende, mediante qualquer de suas funções. Mas aquele que é último pode possuir todas essas funções e elevá-las de si mesma pela criação da fé”[1].

Nos quatro “ainda que” no seu texto Paulo afirma que estes estágios precisam de um novo entendimento, um conhecimento que é experimental e não apenas intelectual – há necessidade de entender-se um relacionamento mais profundamente marcado pelo AMOR, marcado por Deus, de onde (como Paul Tillich afirma) tudo procede.

Paulo trata da diferença entre o ser criança, pensar como criança e agir como criança e o fato de crescer e se tornar um adulto, com pensamentos diferentes, mais desenvolvidos.

Pensando neste entendimento da fé e no conhecimento adquirido que tanto gera como mostra a maturidade, podemos pensar em como a vida de fé se desenvolve.

James Fowler, professor de teologia e comportamento humano da Emory, universidade Metodista americana desenvolveu a explicação de 6 estágios do desenvolvimento da fé, baseados na capacidade do ser humano de amadurecer ao longo de um processo de vida.

O último dos estágios de fé na vida do ser humano listado por Fowler é a chamada fé universalizante. Não se trata aqui do conceito teológico do universalismo soteriológico, ou salvação universal defendida por alguns teólogos, mas comparada com o entendimento da fé como uma negação completa do ‘eu’ – o ser humano neste estágio é capaz de ver a injustiça de forma bem destacada, pois foi formado ao longo da vida por uma consciência ampliada das exigências da justiça e suas implicações. Tem uma visão mais abrangente da verdade e, portanto pode transitar em vários sentimentos e sentidos. Pode olhar para os símbolos e rituais e apreciá-los pela realidade a qual se referem. Vê as divisões e dilacerações da sociedade com profunda dor, pois enxerga a realidade de uma comunidade inclusiva do ser. Estes têm uma poderosa visão de compaixão, justiça e amor que as impele a viver de uma maneira que para a maioria das pessoas parece piedosa ou tola. Normalmente pessoas assim abalam os critérios habituais de normalidade. Sua indiferença a autopreservação os fazem muitas vezes mártires das próprias visões que encarnam. Frequentemente pessoas neste estágio são mais reconhecidas após sua morte. Estas pessoas têm uma graça especial que as faz parecer mais lúcidas, mais simples e ainda assim mais plenamente humana que o resto de nós. São pessoas raras.

Este estágio retrata pessoas que deixaram o entendimento da vida como centro para pensar na realização a partir da comunidade, mas nunca centrada nela e isso, por causa de toda a renúncia ao mesmo tempo de uma ação direta na modificação e integração das pessoas, nós enxergamos que eles são revolucionários. A visão da inclusividade prática os torna diferentes. Uma fé mais ampla que não atende prerrogativas próprias, mas sempre olha para si de modo a ensinar mais de maneira calada, com exercício da justiça do que com palavras e ensinamento tradicionais. A sua visão de fé é gerada pela necessidade do outro que está sendo oprimido, incompreendido, afastado do convívio ou mesmo que estão vivendo de maneira como não deveria viver.

Recebi hoje um e-mail da Profa. Elena Andrei, da Universidade Estadual de Londrina, que coordena o movimento sobre cultura negra (‘afro-brasileira’) e que tem feito um trabalho maravilhoso no resgate da cultura e da diversidade inclusive com material didático próprio, riquíssimo e de alta qualidade sobre o tema – onde, no e-mail, encaminha um ‘compartilhamento’ de uma mulher, negra, professora e que faz parte de uma comunidade Quilombola que sofreu, por parte de policiais, abuso, maus tratos, ofensas e tudo o que de ruim o ser humano pode produzir quando, em posição de poder, afronta a vida e a liberdade de outros, pelo simples prazer (se é que se pode chamar isso de prazer…) de impor e esta imposição, psicologicamente falando é explicada pelo medo – é o medo que faz isso e de medo em medo, de ação em ação constrói-se um ser humano desprovido do bem, unido à desgraça e completamente sem a graça de Deus.

Ao ler o e-mail fiquei imaginando o que pensar; o que falar; o que responder; o que fazer. Notei que minha alma jazia entre a estupefação e a desfaçatez de achar tudo ‘comum’, ou seja, isso é ‘normal’, isso ‘acontece’, mas isso foi apenas um segundo, um instante, porque a letargia não tomou conta de mim e nem a indolência, pois me senti motivado com o compartilhar da professora que se sentiu dilapidada em seu direito como ser humano, como cidadã, como gente.

As situações da vida não podem simplesmente passar por nós e continuarmos a viver como antes – precisamos ser modificados por elas, ser acordados para a vida e que precisamos viver, como Fowler afirma, numa fé que vive em meio à comunidade, centrada no outro – esse é o mandamento de Jesus – ‘amai-vos uns aos outros como eu vos amei’ e nunca deveria sair de nossa mente e coração tal sentimento de dedicação centrada no outro, pois, somente assim deixaremos de ser alheios ao mundo e às pessoas.

Cresçamos, como o apóstolo Paulo afirma, deixemos de pensar como crianças imaturas e pensemos como adultos, como seres que se importam, que se dedicam, que se esmeram por fazer a vida de fé ser algo que verticalmente nos leve para mais perto de Deus e horizontalmente nos achegue ao colo do outro, ao abraço do amigo, à necessidade do desconhecido – somente assim entenderemos como Cristo viveu e como ele quer que vivamos.

Sola gratia.

Notas:

[1] TILLICH (1980), p. 13 – A dinâmica da fé – São Leopoldo: Sinodal.