Talvez uma das principais marcas da retração cultural de 2020 tenha sido o “vazio” nas salas de cinema. Hiato que, dentre outros filmes, deixou o público sem novas histórias do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU), algo inédito desde 2008.

De lá pra cá nos acostumamos com pelo menos três lançamentos anuais do que hoje – dentro do conglomerado da Dinsey – é um dos estúdios mais bem-sucedidos da história do cinema e da cultura pop.

É muito interessante como essa rotina de novos filmes despertou não só eventos singulares do entretenimento, mas uma espécie de afinidade narrativa também. Em outras palavras: não sentimos faltas só de ir ao cinema – sentimos falta de dar continuidade a certas histórias.

No caso do MCU (Marvel Cinematic Universe), as histórias são tão promissoras que agora avançam pra múltiplos gêneros audiovisuais, como as séries de TV. 

O serviço de streaming Disney+ chegou há pouco tempo, porém, como um tipo de “abrigo narrativo” já figura entre os meios culturais mais proeminentes de hoje em dia.

Essa é a casa de WandaVision, a primeira série do MCU. Ela desdobra a história de Wanda Maximoff, a Feiticeira Escarlate (Elisabeth Olsen) e Visão (Paul Bettany), o sintozóide que surgiu em Vingadores: Era de Ultron (2015). 

Os dois ficaram juntos, mas o relacionamento foi interrompido depois que Vis (dono da Joia da Mente) foi morto por Thanos em Guerra Infinita (2018).

Marvel Studios/Reprodução

Na série ele ressurge numa realidade alternativa criada pela feiticeira, que roteiriza a vida que desejava ter vivido, ao contrário da sua traumática trajetória depois de ter perdido seu irmão Pietro e depois seu par romântico. Esse mote implica uma série de reflexões sobre luto e depressão que a história carrega.

Aliás, a experiência de “achados e perdidos” é um tema que vincula as diversas histórias do universo, desde de Iron Man (2008) a Black Panther (2018). Os filmes da Marvel estão recheados de heróis e heroínas que lidam com o abandono, luto, orfandade, solidão e a raiva e tristeza subsequentes.

Mas além de ser um catalisador para as super-habilidades, os traumas e perdas servem também como trampolim para o senso de pertencimento das personagens, que se encontram nos relacionamentos. Exemplo claro disso é a fala de Natasha Romanoff, a Viúva Negra, em Ultimato (2019): “Eu não tinha nada, e aí eu consegui esse emprego, essa família”.

O MCU contém uma série de famílias criadas por pessoas perdidas, como os próprios Vingadores ou os Guardiões da Galáxia – mas o próprio MCU é uma família de histórias que funcionam melhor juntas do que sozinhas. Com esses vínculos as narrativas independentes se tornam mais compreensíveis e bem realizadas.

Essa é uma virtude da franquia, e é também um insight promissor para acessarmos, como espectadores, nossa própria dependência de grandes histórias. O importante missiólogo do século 20, Lesslie Newbigin, disse que

“O modo como entendemos a vida humana depende da concepção que temos da história humana. Qual é a verdadeira história da qual minha história de vida faz parte?”

Ele e outros autores identificaram que contemporaneamente, com o fracasso das utopias modernas, nossa sociedade passou por uma fragmentação narrativa, sem uma grande história regendo a cultura.

Entretanto, já que seres humanos não vivem sem histórias, nosso “abandono narrativo” se converteu em uma pluralidade de outras histórias em competição. Pense na própria Wanda. Suas dores e alienação a fizeram reimaginar uma nova realidade, uma história alternativa.

Uma série de histórias estão à venda com a promessa de dar sentido às nossas experiências e cobrir as lacunas das nossas vidas. 

Mas a questão que Newbigin propõe é imprescindível: “De qual história a minha história faz parte?”. O que caracteriza uma metanarrativa (uma história que abriga todas as outras)?

Os teólogos Michael Goheen e Craig Bartholomew explicam pra gente que uma metanarrativa é abrangente e normativa.

Ou seja: ela tem algo a dizer acerca de cada aspecto da realidade e detalhe do nosso cotidiano (abrangente) e não só diz algo sobre a nossa vida, mas a orienta, define os rumos das nossas motivações e ações (normativa).

Desdobrando essa descrição dupla, podemos dizer que as metanarrativas trazem conexão, integridade e pertencimento. Esses são três elementos decisivos para o florescimento humano. 

Isso não quer dizer que toda história é profícua – atende e suscita – na mesma medida nossa necessidade narrativa. E aqui lembro do que Derek Thompson diz: 

“Uma grande história que serve ao propósito errado é uma coisa perigosa”. 

WandaVision, além de suas qualidades técnicas, com todos seus jogos de linguagens e hiperlinks com o MCU é um ótimo recurso pra expor a necessidade narrativa de qualquer pessoa – e o tanto que precisamos reimaginar nossas histórias.

Bruno Maroni
Apaixonado por leitura, música, playlists do Spotify, café com os amigos, pizzas, séries e tartarugas aquáticas.