É muita má vontade

Amigos, estamos na reta final de mais uma campanha presidencial. Em geral, consideramos estas coisas uma chatice e não nego que o sejam. Quanta mentira, baixaria, jogo de números, omissão de fatos, hipocrisia, cara-de-pau, messianismo, engodo, estatísticas fajutas, pesquisas tendenciosas, e-mails de gente que não tem o que fazer. O que não entendo é: se o país é tão ruim como é pintado, porque tanto interesse em assumir? Quem brigaria pelo controle de uma empresa falida? Os executivos de ponta fugiriam dela ao invés de se engalfinharem numa batalha sem conseqüências para assumi-la.

Meu voto é, como o seu, secreto. Ao contrário do que faz Diego Mainarde, este poço de arrogância e imbecilidade, que se acha o dono da verdade e não esconde mais que usa sua coluna a favor deste ou daquele, prefiro respeitar a consciência crítica do meu leitor, certo de que em primeiro lugar a democracia abre espaço para o contraditório. Como disse Chico Buarque em entrevista recente, se por um lado os últimos acontecimentos no cenário político acabaram com a arrogância do PT de achar que ou você era do PT ou era corrupto, por outro precisamos acabar com essa história de que se não for tucano o camarada é burro. Essas duas forças políticas ocuparam inegavelmente papel de destaque no alcance de conquistas importantes nas últimas décadas da nação, mas são, ambas (e insisto que são ambas) igualmente responsáveis por boa parte dos escândalos, da corrupção, do privilégio aos “amigos dos reis”, desta filosofia nefasta de levar vantagem em tudo, que grassa a nação desde os tempos do Brasil Colônia. Não há desculpa de nenhum dos lados. Os dois erraram e continuam errando.

O que é inaceitável para mim é que os tucanos tenham coragem de levantar a voz para reclamar, depois de tudo o que fizeram e ainda fazem nesta terra. Já tiveram 8 anos para implantar o que bem quiseram:

  1. A política neo-liberal, que inaugurou uma fase de lucros estratosféricos para o sistema financeiro. Nunca os bancos ganharam tanto dinheiro e foi tão difícil para o setor produtivo conseguir dinheiro para trabalhar. Esta situação não começou agora. Começou em 94. O maior erro de Lula foi exatamente o de continuar esta mesma política, ele que foi eleito para mudá-la. Será que foi por que os mesmos bancos que bancaram a campanha de Fernando Henrique bancaram também a de Lula?
  2. As privatizações a preço de banana de tudo o que havia de bom neste país, entregando de bandeja a distribuição de energia, as estradas, as telecomunicações e agora acenando até para a Petrobrás e a Caixa Econômica Federal. Tudo isso com dinheiro do governo, em contratos de risco zero. É só lembrar que quem pagou a conta do apagão fomos nós: as empresas cobraram a diferença das suas expectativas de lucro na nossa conta. As tarifas telefônicas nunca foram tão altas na história. Entregaram as estradas prontas para a iniciativa privada enchê-las de pedágio. Quem mora no estado de São Paulo nunca pagou tanto pedágio na vida. Não use, por favor, o argumento absurdo de que “pelo menos temos boas estradas”. As estradas já estavam aí, construídas com o dinheiro do nosso imposto. A Ecovias, a AutoBan e as outras sanguessugas não colocaram 1g de asfalto. Eles apenas exploram, ou melhor, nos exploram.
  3. Mais do que isso: além de dilapidar seu patrimônio público, a dívida pública triplicou de tamanho. Quem sabe administrar tão bem, por que deixou isso acontecer? Como podem posar de exemplos em administração pública quem tamanho ultraje praticou?
  4. A escola pública em São Paulo, após 12 anos de governo PSDB conseguiu a proeza de criar meninos que aos 14 anos não sabem fazer uma conta simples de matemática ou escrever seu nome corretamente. É impossível aprender alguma coisa com a estúpida “Progressão Continuada”, que na verdade deveria chamar-se “Ignorância Continuada”. Verifique quantos alunos nas universidades públicas do país vêm do ensino médio do estado. Se isso for espalhado para todo o país, em 4 anos teremos um país totalmente analfabeto. Enquanto isso, no mesmo período, assistimos a uma explosão na indústria da educação: nunca houve tantas escolas particulares e elas nunca ganharam tanto dinheiro. Não é à toa nem por acaso: há um sistemático sucateamento da escola pública, para forçar aqueles que podem a pagar as altíssimas mensalidades das particulares. Enquanto isso, a hora-aula do professor de estado em São Paulo fica bem abaixo dos R$ 10,00.
  5. Escândalos? Quem já se esqueceu das negociatas, das compras de votos para a aprovação da emenda da reeleição do Fernando Henrique em 1998? Quem já se esqueceu das transcrições dos telefonemas dos ministros de FHC na época das privatizações, avisando o chefe que eles estavam agindo “na ilegalidade pelo bem do país”?
  6. Quem não se lembra do terror nas ruas de São Paulo e do interior há poucos meses atrás? O PCC, cujos chefões estariam supostamente presos, comanda de dentro dos presídios toda a articulação de ataques que desmoralizaram a polícia paulista. Há indícios de ter havido acordo entre o governo e os bandidos, uma vez que em menos de 2 horas encerraram-se mais de 20 rebeliões simultaneamente. O vice-governador Cláudio Lembo deu uma entrevista à televisão dizendo que sua única preocupação era chegar o final do ano para ele “se aposentar e esquecer a política”. Só quem viveu esse drama, como nós mesmo aqui em São Paulo (capital e interior), tendo que correr para pegar as crianças na escola, fechando os estabelecimentos e nos trancando em casa sem poder sair é que podem avaliar a “política de segurança” do nosso atual governo.

A questão central, no entanto, nem é essa. O que me deixa estupefato é ver essa gente, essa mesma gente, aparecendo depois de tudo isso como paladinos da ética, da competência administrativa, apresentando-se como portadores da salvação nacional. É muita cara-de-pau.

Um erro não justifica o outro. Que se deixe bem claro: tudo o que tem acontecido de condenável no país, deve ser condenado. Quem rouba dinheiro, seja para carregar na cueca ou para mandar para as ilhas Cayman, tem que ir para a cadeia. Quem faz tráfico de influência tem que se banido da vida pública. Quem desvia dinheiro é bandido e tem que ser tratado como bandido. Quem mata prefeito que não concorda com esquema é mafioso. Não há nada que se justifique em nada disso. E é aqui que entra o grande dilema do PT. Eu fui muito incisivo em dizer aqui mesmo nesta coluna: o governo Lula começou a fazer água do ponto de vista ético exatamente quando começou a agir, lá atrás, no caso do escândalo dos bingos, exatamente como o PSDB sempre agiu – escondendo os fatos, jogando a sujeira para debaixo do tapete. Fez pior, ao aceitar o apoio no governo de gente como ACM e José Sarney, esta escória da vida pública nacional. Venderam suas convicções em troca de apoio no congresso. Foi o começo do fim. Nem é totalmente verdade que este governo promove a investigação. Ele faz o que pode para impedi-las, e só investiga quando sabe que não pode agüentar a pressão.

Agora, não se pode ficar com a impressão de que a corrupção no Brasil começou no governo atual. Como se nunca antes se ouviu falar de superfaturamento, de deputado comprado, de desvio de verbas. Parece que os juros subiram agora. Parece que o tráfico de drogas começou nos últimos 4 anos. Que a saúde pública era maravilhosa e de repente foi sucateada. Muito do que aparece agora vinha acontecendo no mesmo governo e com o mesmo partido que agora tenta voltar ao poder. Ou você acha que tudo era um exemplo de fineza e lisura antigamente?

Ainda assim, é incrível perceber que a classe média parece acreditar, ter saudades do tempo do apagão, do PCC no comando. Ouço argumentos incríveis, de pessoas esclarecidas, de gente estudada, competente, que beiram a loucura. Quando o Katrina destruiu New Orleans, uma brasileira ficou presa em um prédio. Eu ouvi uma parente dela na televisão dizendo que “a culpa era do Lula, que não quer mandar um helicóptero para resgatar uma brasileira”. Dá para acreditar num negócio desse? É esta mesma classe média que se opõem às cotas para negros nas universidades, porque não querem repartir o bolo com ninguém. Querem continuar ficando com o melhor de tudo. Eu canso de escutar isso dos meus alunos: “se meu pai pagou para eu estudar em escola particular, por que agora eu tenho que ter essa gente na universidade comigo?” Isto é outro jeito de dizer: “eles que voltem para a senzala. Nós vamos estudar e conseguir os melhores empregos enquanto eles vão continuar lavando nossas roupas e calçadas e morando na favela”.

Muitos acham absurdo que o presidente não fale outra língua ou que não tenha estudado. É interessante que não falam isso dos executivos, como Samuel Klein ou Sílvio Santos, que sempre são tidos como exemplos de sucesso, de gente que chegou lá mesmo sem ter uma educação formal. De mais a mais, desde quando nível de escolaridade pressupõe capacidade, inteligência ou habilidade para se fazer alguma coisa em prol da humanidade? Dentre as pessoas mais ignorantes e xucras que conheço estão alguns com Mestrado, Doutorado e até PhD. Conheço gente que fala duas línguas, que já morou fora do país, mas que nunca foi capaz de aplicar essas experiências de maneira a se tornar uma pessoa mais capaz. Continuam os mesmos imbecis que sempre foram. Por outro lado, meu pai tinha o 3º ano primário, mas foi uma das pessoas mais cultas e preparadas que conheci na vida. Os “letrados” vinham trazer suas teses de mestrado para ele corrigir. Este argumento soa muito mais como uma má vontade da classe média do que alguma coisa que faça diferença prática.

Outros dizem que o “Bolsa Família” é um incentivo à vadiagem, que as pessoas vão parar de trabalhar para ficar encostados no governo. Quem diz isso não conhece a realidade do sertão nordestino, não sabe o que é a fome neste país. Mas isto nem é o pior: se não vão votar no Lula por que acham o Bolsa Família uma esmola escravizadora, como podem votar no Alckmin, que faz questão de deixar claro que vai manter este programa?

Não estou defendendo o PT. Não sou petista. Cada um que vote em quem quiser. Estou apenas questionando os argumentos estranhos de quem não quer votar em Lula. Fica evidente uma pontinha de amargura naqueles que não podem admitir que um ex-retirante, nordestino, operário e não-estudado, alguém que não tenha vindo do berço esplêndido da classe média, possa governar o país. Fica parecendo um discurso elitista de quem não suporta ver o pobre deixar de ser pobre.

Nunca houve tanto desrespeito contra um presidente da República. Também já falei disso aqui. Ameaçaram até de bater nele (e isso para é razão suficiente para descredenciar malucos como Heloísa Helena. Ela foi bem até um ponto, mas seu ódio já faz lembrar os discursos de Hitler.).

Há um outro viés para o qual gostaria de chamar sua atenção. Dentro da própria igreja isso fica explícito. Eu vi e ouvi, com meus próprios olhos e ouvidos, gente em cima do púlpito defendendo, por exemplo, o Paulo Maluf. Baseado em textos que falam sobre a submissão do crente às autoridades, crentes malufistas (é um contra-senso, mas existem…) diziam que não podíamos acusar o homem, porque não tínhamos provas, tínhamos que ter submissão etc e tal. São esses mesmos que agora atacam Lula, chamam-no de “Sapo Barbudo”, de vagabundo e até de assassino. Agora pode? A submissão cristã só vale para quando o governo é filhote da ditadura? Só vale quando o governador é do PPS ou do PFL?

Acho que a gente precisa ficar um pouco mais esperto.