O Deus que cura

“Meu Deus , meu Deus , por que me abandonaste?”[1]

Rafael morreu há 2 anos. Ele esteve conosco apenas por 1 ano e 8 meses. Filho de minha prima Liliane e do meu amigo Giordano, era uma criança alegre, sadia e com um vívido ardor pela vida. Lembro-me muito bem de todos os detalhes da sua história. Lembro-me de quando fiquei sabendo da gravidez de minha prima, do casamento belíssimo que se seguiu, lembro-me da gravidez e da alegria que o Giordano tinha em exibir a barriga da esposa. Lembro-me da tristeza que fiquei por não poder estar perto no dia do parto, já que moro há mais de 400Km de distância, mas da alegria de saber que tudo havia corrido bem… Lembro-me de cada sorriso, de cada ‘chichio’ (seu meigo jeitinho de dizer ‘titio’) que ele dizia. Lembro-me do orgulho de meus tios, agora avós, em exibir seu netinho onde quer que fossem.

Lembro-me também, daquela tarde nublada na faculdade. Estava trabalhando nas dependências do Laboratório de Histologia quando minha namorada entrou pelas portas. Seu olhar era cabisbaixo e ela falava docemente, como que querendo me poupar da verdade. Logo percebi que algo estava errado. Argüi-lhe sem meditar no que estava dizendo: “Quem morreu?” Ela agachou-se próximo da minha cadeira e disse-me: “O Rafinha morreu”. Eu não pude acreditar na resposta. Na verdade eu não esperava que qualquer pessoa tivesse realmente morrido. Minha pergunta foi apenas casual. Aquela resposta foi-me como um punhal atingindo minh’alma.

Louvo a Deus pela disponibilidade de meu sogro, o Rev. Jeazi Tavares que prontamente se ofereceu a levar-me até a casa de meus pais, que nesta época moravam em uma cidade a 50Km de Juiz de Fora. Lá reunimos nossa família e nos dirigimos para Ipatinga, a fim de velar nosso pequeno tesouro. Ainda não podia acreditar no que estava acontecendo. Para mim tudo era uma grande peça, um truque sem graça. Aliás, graça era a única coisa na qual eu não pensava.

Chegamos a Ipatinga por volta de 9h da noite. Foi estarrecedor entrar no templo da Igreja Presbiteriana do Iguaçu e ver, logo abaixo do púlpito, um pequeno esquife contendo o corpo frágil e dócil do meu priminho.

Ouvi muitos lamentos, muitos pesares. Muitas palavras confortadoras dirigidas ao Giordano e à Liliane. Também ouvi dezenas de outros comentários que não são dignos de qualquer referência neste relato, tamanho o mal que causaram, tanto nos corações de meus primos, como também no nosso e de nossa família.

Passaram-se mais de 2 anos desde a morte de Rafael até que eu pudesse escrever a respeito. Nunca teremos as respostas para todos os ‘por quês’. No momento em que a compreensão deste fato foi clara para mim, senti-me à vontade para escrever este relato. Rafael está junto ao trono de Deus. Creio que Deus nos permitiu passar por isto, dentre outras coisas, para nos mostrar que o salmo 23 é muito mais do que um simples poema. Quando ele diz a respeito do ‘vale da sombra da morte’ ele não descreve uma passagem por ‘sobre’ este vale, mas por ‘entre’ ele. Nenhum de nós está preparado para atravessar o vale da sombra da morte. A sombra é o ocaso, algo efêmero. De um lado da sombra está a escuridão, de outro, a luz. No meio, a sombra. Algo disforme…

Confesso que me senti atraído, por diversas vezes, a pensar na morte do Rafael como um juízo de Deus para nossa família, especialmente para meus primos. Contudo, não temos o direito de fazer de Deus o autor do mal e do sofrimento.[2]

Hoje, após todas as feridas estarem bem cicatrizadas, posso pensar em como foi duro para Deus chamar o Rafael para si. Ele sabia exatamente como seria o sofrimento da Liliane e do Giordano. Sabia quantas lágrimas derramaríamos. Ele sabia o quanto nossos corações e vidas jamais seriam as mesmas após aquele trágico dia.

Posso afirmar isto com toda certeza, porque só quem sofreu pode avaliar quem sofreu, pode se identificar, pode ter o mesmo sentir…[3]. E Deus sabe, exatamente o que é perder um filho, Ele sabe mais do que ninguém, o que é ter seu um filho amado arrancado de seus braços por um evento trágico. Deus conhece cada farpa que faz nossas almas sofrer, porque Ele mesmo se fez homem e não abdicou, por nenhum momento do direito de sofrer como homem[4].

William Barclay, A spiritual autobiography, Eerdmans, 1975, p.45. Thelicke, um pregador escocês acerta exatamente o alvo, ao descrever o tratamento divino ao sofrimento humano:

E o Filho [Jesus] diria:
“Cada ferimento sobre o qual estendi as mãos doeu em mim mil vezes; cada demônio que expulsei olhou-me com escárnio; morri a morte que eu mesmo derrotei; deixei meu próprio corpo ser pranteado e sepultado na terra. Quem há entre vocês que sofra sem que eu sofra junto? Quem há entre vocês que morra sem que eu morra junto? Sou seu companheiro e seu irmão em cada dor, seja qual for a perda… Deus sofre as dores por você e com você”

Certo escritor ao perder sua filha e seu genro em um trágico acidente marítimo foi confrontado com a seguinte pergunta: “Onde estava Deus quando sua filha e o noivo pereceram?” Ele respondeu sem hesitação: “No mesmo lugar em que ele estava quando seu próprio Filho morreu”[5].

Gastei muito tempo de minha vida após a morte do Rafinha tentando entender o por quê, até Ele me mostrar que tudo isto foi necessário, para que eu percebesse que Deus está ao meu lado, mesmo na sombra da morte e até mesmo sob sua escuridão Ele estará lá. Assim como Ele estava com o Rafa ao levá-lo ao Lar Eterno, Ele estará comigo, porque Ele promete isto – “E eis que estou convosco todos os dias até à consumação do século.[6]” ” porque nunca uma profecia foi proferida pela vontade humana, mas foi movidos pelo Espírito Santo que homens falaram da parte de Deus.[7]” “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome;os quais não nasceram do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus.[8]” “Não existe salvação em nenhum outro, pois debaixo do céu não existe outro nome dado aos homens, pelo qual possamos ser salvos.[9]” ”De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei.[10]”

Obrigado, Deus, porque pela morte do Rafael, pude entender que o Senhor entende meu sofrimento e está comigo, não importa o que eu faça ou quão pecador eu seja. Tu te importas tanto… eu não tenho outra alternativa, Senhor, senão render-me a Ti, ao teu amor inexplicável, gracioso, fiel e inexplicável. Pude descobrir que Tu és Javé Rafa em minha vida – o Deus que cura as feridas mais profundas do corpo e da alma… Mais uma vez, querido Senhor, obrigado.

Notas:

[1] Marcos 15:34b (TEB) [2] Orrell, Julian S. in: Quando morre uma Criança, Multiletra, p.66 [3] Sérgio Pimenta [4] Salmos 91:11 Porque aos seus anjos dará ordens a teu respeito, para que te guardem em todos os teus caminhos. (ERAB). Apesar de ser Deus, Jesus não cedeu à tentação de Satanás, quando este o tentou (cf. Mt 4:6) [5] Ibidem p. 23 [6] Mateus 28:20b (ERAB) [7] 2 Pedro 1:21 (TEB) [8] João 1:12-13 (ERAB) [9] Atos 4:12 (Bíblia Católica) [10] Hebreus 13:5b (ERAB)