Corpus Christi (1)

Amigos, há uns 4 anos que eu faço uma pesquisa pessoal entre meus amigos católicos. Nesta época do ano eu sempre pergunto a dois ou três deles o que se comemora no dia de Corpus Christi. Em geral, eles não sabem. Começou como uma mera curiosidade pessoal, uma vez que, não tendo tradição familiar católica, nunca soube direito do que se tratava a data.

Fiquei surpreso em perceber que a grande maioria das pessoas a quem consultei, entre elas fervorosos freqüentadores dos eventos relativos à sua crença, não sabiam me responder. Uns ficaram de consultar, outros esqueceram do assunto. Apenas duas pessoas me esclareceram: celebra-se no dia de Corpus Christi (palavras latinas para “corpo de Cristo”) a instituição e celebração da Eucaristia. Fiquei mais curioso e fui pesquisar um pouco mais. De fato, é isso que se comemora. Porém, descobri também que esta comemoração tem a ver não com o ensino apostólico, mas com a suposta revelação que uma freira belga, Juliana de Mont Cornillon, falecida em 1258, teria recebido do próprio Cristo pedindo a instituição desta festa anual. Ou seja, Jesus não comunicou aos apóstolos o que posteriormente teria comunicado a esta religiosa: ele queria uma festa da festa, a comemoração da comemoração. Se a Eucaristia (nome católico para o termo bíblico “Ceia do Senhor”) é a lembrança do sacrifício de Cristo, o dia de Corpus Christi é a lembrança da Eucaristia.

Chamaram-me a atenção dois aspectos nessa minha pesquisa. A primeira é que a maioria dos católicos não sabe o que celebram em uma das datas mais importantes do seu calendário religioso. A segunda é que, de uma hora para outra, baseado em uma “revelação” particular, foi instituído o símbolo do símbolo. Aquilo que já era uma reunião simbólica do corpo de Cristo (já que a teoria da transubstanciação foi introduzida depois de muito tempo de finda a era apostólica), uma reunião para celebrar a memória de Cristo, ganhou uma outra festa para lembrar que era preciso lembrar. Uma coisa um tanto confusa, no mínimo.

Porém, não é meu propósito debater com os meus amigos católicos a validade de tudo isto nem mesmo criticá-los. Escrevo este texto para questionar, isto sim, e perguntar aos meus irmãos de fé e prática, aqueles que professam a fé evangélica e que periodicamente se reúnem para celebrar a Ceia do Senhor: entendemos de fato o que estamos fazendo? Podemos responder com convicção o que significa a celebração deste rito? Compreendemos de verdade o significado dos símbolos dos quais participamos? Ou será que tudo se transformou num mero cumprimento de deveres religiosos, que se fazem penosamente, quase como um fardo?

Senão, vejamos. Quantas pessoas, inclusive aqueles criados debaixo da tradição das igrejas dos Irmãos, encaram a Ceia da maneira correta e bíblica? Experimente questionar, como eu já fiz e volto a fazer neste artigo, as razões porque celebramos a Ceia da nossa maneira. Você vai se surpreender com a falta de argumentação bíblica para comprovar o que se ensina como “a única maneira certa de lembrar o Senhor”. Nisso demonstramos uma falta de discernimento bastante semelhante à dos católicos.

Você alguma vez parou para pensar o que Paulo quis dizer quando escreveu que “aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será réu do corpo e do sangue do Senhor” (I Co 11:27)? Em geral, a resposta de bate-pronto é: “quem tomar a Ceia tendo algum pecado não confessado”. Porém, a análise mais cuidadosa do texto deixa claro que esta é uma resposta parcial e, portanto, incompleta. O texto continua, exigindo uma auto-análise de cada participante e conclui: “pois quem come e bebe sem discernir o corpo, come e bebe juízo para si” (v.29, com meu grifo). Portanto, não é somente estar em pecado que nos torna réus do corpo de Cristo. Também é passível do juízo aquele que participa desta celebração sem discernimento, isto é, sem compreensão, sem sentido, sem consciência do seu valor e do seu significado. Quantas vezes você viu alguém perguntar antes da Ceia se todos entendiam o que estavam fazendo? Não é apenas uma questão de saber que o pão simboliza o corpo e o vinho simboliza o sangue do Senhor. É mais do que isso. Muito mais. È dispor o coração, a cada comemoração, para compreender um pouco melhor o sacrifício representado nos elementos que comemos. É recordar o Senhor e testemunhar, naquele ato, da nossa comunhão com Ele e com os outros irmãos ali presentes. É parar a correria da vida e refletir com paixão na Paixão. É encher os olhos da fé com a bendita e indispensável visão e memória do Senhor. Qualquer coisa menor do que isso, segundo Paulo, nos coloca na categoria de meros pagãos celebrando um rito vazio. Isto sempre enojou o coração de Deus, desde a antiga aliança.

Por isso é que não dá para entender como é que para tantas pessoas, especialmente mais jovens, e até para igrejas inteiras, celebrar a Ceia é uma questão opcional. Quando dá, a gente faz. Não há ênfase no valor deste momento. Este é o resultado de se fazer as coisas sem compreensão. Ninguém dá valor àquilo que não entende.

Longe de mim defender a tese, tão fortemente defendida entre as igrejas dos Irmãos, que apenas celebrar a Ceia todos os domingos, como fazemos, é um sinal do valor que damos à Ceia, porque isto seria tapar o sol com a peneira.1 Porém não dá para aceitar como normal que um cristão encare a Ceia do Senhor como algo descartável ou secundário em sua caminhada de fé.

Esta é a primeira coisa que me chamou a atenção na resposta dos romanistas à minha indagação. Acho que fui claro o suficiente para mostrar que não podemos criticá-los por isso, antes de fazermos um exame minucioso do nosso próprio coração em relação à Ceia. Fazer as coisas mecanicamente não traz nenhum benefício para ninguém.

Por outro lado, saiba que não existe nenhuma razão bíblica justificável para um crente de verdade se ausentar da mesa do Senhor. Nem mesmo pecado. A instrução bíblica é muito clara: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo, e assim coma do pão e beba do cálice” (I Co 11:28). Paulo não diz que é para se examinar e se afastar da Ceia. É para examinar-se e continuar a celebrá-la. Se ao examinar-se você perceber alguma coisa que lhe impeça, a única coisa que lhe cabe fazer é resolver esta pendência, acertar a vida e voltar. Não há uma única justificativa para a chamada “auto-disciplina” ou para o abandono desta prática de obediência ao mandamento do Senhor.

Pense nisto antes da próxima ceia na sua igreja e verifique se faz sentido participar dela só no dia que dá vontade ou quando você está sem sono. Usei meu feriado de Corpus Christi para pensar nisso. Use a semana seguinte para fazer o mesmo.

Pensando bem:

1 A rigor, não há um único texto bíblico mandatório que ensine ou exija que a Ceia seja celebrada todo domingo nem mesmo que seja celebrada aos domingos. Alguns pretendem usar o texto de Atos 20:7, onde encontramos uma igreja reunida no primeiro dia da semana, o domingo, “com o fim de partir o pão”. Porém usar este texto para afirmar que: a) só podemos celebrar a Ceia aos domingos e b) que a Ceia era celebrada todos os domingos é uma aberração hermenêutica, bem ao estilo dos que querem fazer a Bíblia concordar consigo e não o contrário. Primeiro porque o livro de Atos é um livro narrativo e não doutrinário. Segundo porque dizer as duas coisas acima só é possível por inferência. Ali encontramos apenas a menção de um fato, não uma instrução a ser seguida. Acho a celebração semanal da Ceia uma excelente tradição, coerente com o desejo que deve habitar em nosso coração de lembrar constantemente do Senhor. Mas não podemos afirmar honestamente que este é um ensinamento bíblico e muito menos que esta tradição nos torna melhores ou mais “bíblicos” do que outros grupos que não fazem dessa maneira. Repito, especialmente àqueles que gostam de citar esta coluna pela metade com o intuito de difamar, que considero uma tradição muito boa, louvável e digna de ser seguida. Porém, é preciso reconhecer, até por uma questão de justiça à enorme contribuição do chamado Movimento dos Irmãos de Plymouth à história da igreja contemporânea, que esta foi uma tradição estabelecida por este movimento. Não precisamos nem devemos torcer as Escrituras para dar a esta tradição o status de “doutrina bíblica”. Isto não é honesto. Falarei um pouco mais sobre este aspecto no segundo artigo desta mini-série.