Dona Morte e seus dois caminhos

“… a língua dos sábios é medicina” [1]

Estou morrendo. Não sou portador de nenhuma doença grave. Não escrevo este artigo deitado em um leito hospitalar. Não sofri qualquer acidente ou perda recente ou mágoa ou qualquer coisa que me fizesse sentir ressentido. Apenas percebi que estou morrendo. Desde que fui gerado isto está acontecendo. Meu corpo se renova hodiernamente e também morre e, aos poucos, este processo vai se equilibrando, até que um dia o número de células mortas será muito superior ao das células jovens e minha trajetória chegará ao fim.

Lembro-me com saudade do natal de 2001. Fui convidado a vestir-me de papai-noel para levar presentes aos pacientes do Serviço de Pediatria do Hospital Oncológico onde sou estagiário. Quanta alegria senti ao ver “sorrisos” naqueles rostinhos sofridos, pálidos e alguns com a cabecinha calva por causa da quimioterapia. Minha impressão, e talvez para a maioria dos presentes à festa, era que naquele momento o câncer não mais existia. As agulhas haviam sumido, o cheiro alcoólico do setor fora substituído por cheiro de bolo e refrigerante – cheiro de alegria! Deus estava vertendo “gotas de Graça” sobre nós. É como se Ele dissesse: “Sim, Eu estou aqui! Eu sei o quanto a carga está pesada. Vou carregá-la para vocês um pouco… Posso fazer isto sempre, se você quiser…”

Olhando as fotos daquela festa não pude deixar de notar os muitos rostinhos que já não estão mais entre nós. Um, porém, me trouxe um sentimento especial – uma alegria chorosa! Trata-se de um menino, portador de um tumor cerebral resistente a todos os tratamentos realizados. Conheci Joseph[2] naquela festa. Um belo garoto com uma estrutura física forte. Joseph já não andava mais sozinho quando o conheci. Seu tumor comprimia a área motora do cérebro e todos os seus músculos estavam flácidos. Falava com dificuldade por causa da fraqueza muscular, porém mantinha intacta sua capacidade de elaboração do pensamento. “Papai Noel!!!” – gritou ele várias vezes até que eu me desse conta que naquele dia eu era o dito-cujo Papai Noel! “Que foi, Joseph?!” “O senhor pode tirar uma foto comigo?”

Creio que, naquele momento, o que Joseph mais queria era ter de volta o direito de ser criança, de viver longe de agulhas e exames amedrontadores, de poder tirar uma foto com o Papai Noel e brincar com os presentes de natal.

Joseph está no CTI há alguns dias. Seu tumor cresceu e ocupou parte do tronco cerebral – região que controla as funções respiratórias e os batimentos cardíacos. Ele já não fala mais. O reflexo de tosse foi abolido. Seus pulmões estão livres da sufocação pela própria secreção graças a aparelhos e sondas. Joseph também está morrendo.

“O maior desejo do homem é a imortalidade”. Assim escreve a psicóloga Ingrid Esslinger[3]. Ninguém enfrenta a morte de alguém como um fato qualquer. Os doentes morrem no hospital, longe dos olhos – e, não raro, do coração – de seus amigos e parentes[4]. Insistimos em manter vivos, ainda que inertes, as pessoas que amamos, apenas pelo medo de passarmos à sombra da morte.

A Bíblia conta a história de uma senhora que, depois de idosa, teve um filho. Este menino não fora reivindicado por ela verbalmente. Deus, entretanto, sabia o quão aflito e amargurado era seu coração por não ter filhos e então envia o profeta Eliseu para dar-lhe a notícia que Deus permitiria que ela ficasse grávida. O menino nasceu e cresceu com saúde. Quanta alegria e cor entraram naquela casa após a chegada do menino! Repentinamente, em uma tarde comum, uma forte dor de cabeça abateu-se sobre o garoto. Tamanha sua gravidade que ocasionou sua morte. O desespero tomou conta daquela mãe de tal forma que ela mandou chamar o profeta de Eliseu que, após orar a Deus, restaurou a vida do menino.[5]

Já vi algumas mães que perderam os filhos para o câncer. Mesmo com todo o esclarecimento, nenhuma delas realmente crê que seus filhos estão morrendo.

“Gastamos nossos dias tentando aproveitar a vida e chegamos ao momento da morte totalmente despreparados”… “Se você não disse o que queria dizer, não amou o quanto poderia amar, não tentou aquilo que desejava tentar, logicamente morrerá angustiado, com a sensação de que a vida se foi e tudo ficou pela metade.”[6]

Pelas suas feridas [7]

[Jesus] “foi traspassado pelas nossas transgressões… e pelas suas pisaduras fomos sarados”. [8]

O médico de nossa missão médica fazia perguntas em inglês; eu as traduzia para o espanhol; e um índio maia que falava espanhol as traduzia para o idioma local para os pacientes. Era desgastante, mas perseveramos. Nossa equipe levava o único serviço médico disponível naquela aldeia remota.

Uma mulher reclamou de dores de cabeça. O intérprete disse; “Ela tem tido essas dores desde o dia em que os soldados jogaram seu bebê numa fogueira”. Nossos comprimidos não a ajudariam.

A princípio as histórias de tais sofrimentos me oprimiam. Mas como eu retornava todos os anos para ajudar essa boa gente, aprendi o segredo da sua sobrevivência diante de tamanha adversidade. Os cristãos maias não têm qualquer dificuldade para se identificar com um Deus que foi debochado, espancado e morto por soldados. Eles sabem que pelas feridas e Cristo eles estão eternamente curados.

Quando viajo para a terra dos maias, já não vou com o espírito de quem está levando algo para lhes oferecer. Sei que eles me darão muito mais do que eu jamais poderia lhes dar.

ORAÇÃO: Senhor, quando os problemas, sofrimentos e tragédias advirem sobre nossas vidas, ensina-nos a nos apoiar em nossos amigos, nossas famílias e nossa fé. Ajuda-nos a contar com o Teu poder curativo. Em nome de Jesus. Amém.

Um poeta cristão, já em fase terminal de um câncer gástrico, escreveu este belo poema que depois foi transformado em música:[8]

Só quem sofreu pode avaliar quem sofreu
Pode se identificar, pode ter o mesmo sentir
Só quem sofreu tem palavras de puro mel
Que transmitem todo o calor para quem precisa de amor

E o Cristo encarnou, sofrendo como homem a dor
Sabendo o que é padecer na mente e no corpo
E Ele morreu, e até a própria morte venceu
Mostrando amor capaz de atender a todo o homem

“A fé ajuda a superar a ansiedade em relação à idéia de finitude”, declara a psicóloga Maria Júlia Kovácz.[9] Concordo em parte com ela.

Hoje, pela manhã, reli a narração de São Marcos do julgamento de Jesus. A brutalidade dos religiosos, a covardia dos discípulos, a angústia de Cristo no Getsêmani me fizeram pensar em algumas coisas… Se fosse hoje seria diferente? O veredicto seria mais justo? Custosamente concluí que, mesmo com o mundo cercado de leis humanitárias e foros honrados, a sentença seria a mesma. Deus sofreu cada minuto de toda esta história. Cada segundo de dor foi, certamente, uma flechada no coração do Pai. Ele sofreu. Ele é capaz de avaliar quem sofreu e dizer: Eu sei o que você está sentindo!

A fé não tornou os discípulos mais corajosos à face da morte. Pelo contrário: a fé os tornou medrosos e arredios. Somente a certeza de que seu Mestre estava vivo os fez ter coragem e ousadia novamente. Esta fé é que cura e restaura. Ela é verdadeira, não por basear-se numa teoria de vida-pós-morte, mas por estar assentada no fato que Jesus venceu por si só o grande inimigo da vida: a morte. E Ele mesmo disse: “Eu falei tudo isso para que tenham paz no coração e na alma. Aqui na terra vocês terão muitos sofrimentos e tristezas; mas tenham ânimo, porque Eu venci o mundo” – Jesus Cristo.

Notas:

[1] Provérbios de Salomão 12:18b (ERAB) ERAB: Edição Revista e Atualizada do Brasil [2] O nome verdadeiro de Joseph não será revelado para preservar a família. [3] Ingrid Esslinger – Universidade de São Paulo (USP) citada por Maria Fernanda Vomero em SuperInteressante. [4] VOMERO, Maria Fernanda em MORTE. SuperInteressante. [5] Confira a história em 2Reis 4:16-37 [6] Afirma o filósofo Basílio Pawlowicz, da Associação Palas Athena, um centro de estudos especializado em temas ligados à espiritualidade, em São Paulo. [7] Al Peabody (EUA) em O Cenáculo-Março/2002 [8] Isaías 53:5 [9] Este poeta chamava-se Sérgio Pimenta, autor de várias músicas cristãs, exímio músico. [10] Maria Júlia Kovácz é coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM) da USP e autora de Morte e Desenvolvimento Humano. Citada por Maria Fernanda Vomero em SuperInteressante.