Individualidade: Meus caracteres úteis

O que você é sempre vai desagradá-lo se você alcançar tornar-se o que não é.” (Santo Agostinho, Confissões)

Os temores estão no modo como o vemos. Confesso que faço o maior esforço para diagnosticar os sentimentos da vida interior. Penso compulsivamente tentando ajustar meu foco. Ou melhor ainda: busco aproveitar o intervalo da vida, pode ser uma opção de viver melhor.

Com esperança nas promessas de novas alegrias, fugimos tentando encontrar uma saída, a abertura do lugar comum. Às vezes sou pego inesperadamente por pensamentos soltos… Faltam-me inspirações, divago criando conversas divertidas. A inspiradíssima escritora Adélia Prado escreveu: “De vez em quando Deus me tira a poesia. Olho pedra, vejo pedra mesmo. O mundo, cheio de departamentos, não é a bola bonita caminhando solta no espaço.”¹ É assim mesmo! Enquanto me encolhia diante dessa realidade, fiz combinações de sentimentos: Descanso interrompido, medo das pressuposições alheias, inquietações, adequações emocionais, senso equilibrado de auto-estima e autocrítica, apreciação do ato falho; evoluem e acabam empurrando minhas perspectivas de alegrias para o abismo. Minha alacridade se esvai num piscar de olhos. Contudo, são pedaços de momentos que não devo descartar. Funciona como filtro naquilo que devo experimentar.

Vejo tudo isso de forma expressiva no texto de Abraham Heschel:

“Na realidade, existe uma tensão permanente no homem entre o foco do ser e os objetivos que residem além do ser. A existência animal é uma condição de vida impulsionada por forças indiferentes a determinados objetivos. A vida animal no homem é impulsionada a se concentrar na satisfação de seus desejos; a vida espiritual no homem é a vontade de servir a objetivos mais elevados, única maneira de transcender às suas próprias necessidades. Dizer que o anseio de se livrar de interesses egoístas é tão egoísta quanto qualquer outro interesse é uma confusão semântica. A diferença está na intenção do ato ou no seu direcionamento. Os interesses egoístas são condutivos, impulsionam: a libertação dos interesses egoístas é uma força centrífuga que vira o ser na direção contrária de si mesmo. A essência do homem, sua excepcionalidade, reside em seu poder de ultrapassar seu próprio ser, de se elevar além de suas necessidades e de seus motivos egoístas. Ignorar a seriedade dessa tensão é viver num paraíso de tolos; perder a esperança de ter forças para lidar com essa tensão é se mudar para o inferno dos cínicos.”. ²

Meu caro amigo leitor, imagino que, pelo menos, uma vez na vida sente-se como se estivesse empurrando o trem sozinho a espera de uma oportunidade. Talvez alcançado pela vergonha ou a sensação do deslize de sua fragilidade a descoberto, descobriu que é humano! E, assim sendo, é compreensível sua aparente crise. Ora, qualquer faceta do eu manifestado deve ser aceito sem renúncia. Não há nada de errado em querer uma vida mais tranqüila.

Estou ciente que devo encarar a realidade da vida, ainda que esta estação demore passar. Aprender a focar melhor as perspectivas das mudanças e o preparar para elas.

Notas:

¹ Adélia Prado. Poesia Reunida, p.199.

² Abraham Joshua Heschel. Deus em busca do homem, p. 233