Obras da carne versus fruto do Espírito (1)

Obras da carne versus fruto do Espírito: um olhar para a teologia do mundo, da carne e do diabo baseado em Gálatas 5 – parte 1

Este material foi escrito e baseado em obras de Hendriksen, de Adam Clarke, Aristóteles, Albert Barnes e Edith Hamilton

Conhecendo nossos inimigos

Existem três grandes inimigos da vida cristã: o mundo, o diabo e a carne. O mais próximo e, portanto, o mais perigoso deles, pois está dentro de nós, é a carne (natureza humana) que luta contra nossa vida e declara guerra a tudo que é de Deus, em nós e ao nosso redor.

Estamos em guerra nestas três frentes – contra o diabo guerreamos os principados, as potestades, os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal e lemos sobre isso com o que Paulo escreve aos Efésios no capítulo 6 versículo 12.

Contra o mundo guerreamos não olhando para os seres humanos e os lugares em que habitam como se dali pudéssemos ter inimigos ou que fosse algo que Deus odiaria – Deus amou o mundo, portanto não é sobre isso que é nossa guerra e sim contra o sistema que rege o mundo, o sistema anti-Deus, anti-Cristão, que está impregnado de malignidade (o mundo está morto nas obras do mal – 1 João 5.19) e que, portanto se opõe a Deus, a Cristo e seu Reino. As estruturas malignas do mundo são contrárias a Deus e aos seus planos. Há uma intenção maligna no mundo – a intenção de retirar da proteção de Deus e de seu amor justo e bom as pessoas que ele mesmo criou –criando um lugar para habitação que tende a ser desprovido de fé, de amor, de justiça, de bem, de Deus.

Contra a carne é uma luta inglória, pois ao lutarmos com ela lutamos contra nós mesmos e nossos desejos mais profundos e mais arraigados.

O que é carne afinal?

O primeiro elemento que vemos é a carne física – é a parte física que encobre os nossos ossos; que dá forma ao nosso corpo; que mostra quem somos, pelo menos mostra como somos fisicamente; é a parte da qual temos maior lembrança de sermos e como interagimos com o mundo que nos cerca é através desta carne que se destaca em nosso corpo. Nós somos carne que aparece. Carne a mostra.

Em segundo lugar, devemos entender a carne como uma forma de ligação interpessoal – Paulo diz que Jesus descendia de Davi “segundo a carne” (Romanos 1.3). A carne forma uma ligação entre os membros de uma família, de modo que Jesus, “segundo a carne” (Romanos 9.5) faz parte dos descendentes de Abraão. Nós somos carne que se relaciona. Carne viva.

Quando em Gênesis 2.23 e seguintes diz que a união entre o homem e sua mulher é uma união “carnal”, ou seja, os dois são unidos “segundo a carne” e tornam-se “uma só carne”. Portanto o que entendemos é que muito mais que um elemento físico está em jogo aqui.

Em terceiro lugar, mesmo em questões “espirituais” necessitamos da carne como ponto de ligação íntima com Deus – somos membros do corpo de Cristo ( I Coríntios 6.15) e o Espírito do Senhor habita em nosso corpo (em nossa carne – I Coríntios 12.13). Deus não permite que nossa espiritualidade se desprenda da carne, fazendo com que tudo o que somos ou fazemos espiritualmente seja isolado e morbidamente separado, como se pudéssemos separar o que Deus ajuntou. Deus não permite nenhum contato de pessoas fora da carne: consulta a mortos, comunicação extra-sensorial (fora do corpo) justamente porque isso causaria em nós (e em outros!) uma ligação inadequada para seres integrais, compostos de sua integralidade, de alma, de corpo, de carne, de espírito, de mente e tudo junto formando um ser, um ser humano.

Em quarto lugar deve ser entendida como natureza humana – a santificação é muito mais que uma posição que nos confere o Senhor como “separados” para ele – é um “alvo que deve ser conquistado pela luta contra a carne” (Russel Shedd) – esta luta que o Russel Shedd afirma aqui é como referência a natureza humana.

Nossa natureza humana, decaída em Adão, continua ocupando todo espaço que o Espírito de Deus não domina. Somos novas criaturas em Cristo (II Coríntios 5.17; Colossenses 2.10), mas também velhos portadores do vírus do pecado, sujeitos a tentações e quedas (Gálatas 6.1; Mateus 18.15 ss; Hebreus 4.15; 12.1).

1. A NATUREZA DA CARNE

Nossa natureza caída, pecaminosa, caracteriza-se pela sutileza e hipocrisia. Todos nós temos uma tremenda dificuldade em enxergar nossa carnalidade. Vivemos atrás de máscaras que nos escondem até de nossos próprios olhos e percepções e assim impedimos que o espelho de Deus nos revele quem somos (cf. Tiago 1.23 s).

Auto-justificação – cobrimos o mau cheiro dos nossos pecados com o desodorante das desculpas. Defendemos nossas ações sempre colocando em alto relevo as boas intenções que temos ou tivemos. Salientamos nossas boas qualidades para evitar a penosa necessidade de uma cirurgia – do arrependimento real.

Prazer nas falhas dos outros – um sinal da “carne” em nós é aquele gosto perverso de receber notícias de que outros (mesmo nossos irmãos!) vão mal ou estão indo para o “buraco”. Geralmente nós gostamos quando outros caem para que nossa luz brilhe mais forte (e apareça!) ante a escuridão que reina.

Independência, individualismo e presunção – quando os sucessos da vida cristã vem e trazem os sentimentos de maturidade e firmeza é hora de vigiar contra este inimigo ferrenho – a independência de Deus, o isolamento como se pudéssemos viver sozinhos, pois nos bastamos a nós mesmos e a presunção de acharmos que podemos cuidar de nós mesmos (Gálatas 5.7 fala sobre os que corriam bem…).

A carne envergonha-se de sua fraqueza – a sociedade nos cria para sermos fortes e não fracos – ´a vida é maravilhosa, basta não enfraquecermos´ que vai contrariamente ao que a Palavra de Deus nos ensina que a vida melhora apenas quando enfraquecemos. Somente almas conscientes de sua própria fraqueza encostam-se ao Senhor com peso suficiente para conseguir ficar firmemente em pé e andar em linha reta pelo poder da sua ressurreição” (J I Packer).

A fuga da culpa – é o método pelo qual a carne evita as dores provindas da humilhação. Nossa natureza herdada de Adão não vê com bons olhos as próprias falhas. A “carne” detesta o sentimento de culpa de maneira que carrega em si a verdadeira necessidade de se defender e fugir, geralmente levando a culpa pessoal para outros.

Lutamos contra a Palavra de Deus que nos ordena confessar nossos pecados (I João 1.9) para não admitirmos nossa culpa, concordando assim com Deus. Não fosse uma característica da carne fugir da culpa a vida em comunidade e na presença de Deus seria repleta de paz.

Há dois alvos que tenho procurado contemplar sempre durante estes 40 anos; um deles é a minha própria imundície; o outro é a glória de Deus na face de Jesus Cristo; e penso que ambos devem ser vistos em conjunto” (Charles Simeon).

Rebelião contra Deus – a inimizade contra Deus cria o desgosto humano por cultos, oração e comunhão prolongada na presença do Senhor (Romanos 8.7; I Pedro 2.11). Mesmo sendo libertados por Jesus da autoridade das trevas sobre nossas vidas e transportados para o reino do Filho de seu amor (Colossenses 1.13) não escapamos da lei de nossa carne que guerreia contra a lei de Deus. Se não tornarmos providências, tornamo-nos novamente prisioneiros da “lei do pecado” (Romanos 7.23). A carne continua infectada pelo pecado, mesmo após ter a participação nessa nova vida (de Cristo!).

Podridão, decomposição e corrupção – a carne, material orgânico de toda criatura, está sujeita à corrupção (I Coríntios 15.53). Paralelamente a carne no sentido moral também apodrece, tornando o coração uma espécie de fossa de onde emanam idéias, atitudes, palavras e ações perversas. Não é preciso ser dotado de uma grande inteligência para ver claramente que nas profundezas do ser humano existe uma perversidade tão característica como é da natureza do gato perseguir um rato ou do galo cantar de madrugada. Essa corrupção cancerosa se propaga e contamina também os relacionamentos que temos com nosso próximo.

Vimos a questão da Natureza Carnal – carne física, carne como ligação entre pessoas e natureza humana.

A natureza humana em nós é carnal e por isso pecaminosa. Nascemos em pecado, em pecado vivemos e pecamos todos os dias através de nossos pensamentos, palavras, ações e omissões.

Conhecer nosso inimigo é necessário para podermos aprender lutar contra ele.

2. AS OBRAS DA CARNE

Gálatas 5.19-21 – essa lista mostra juntamente com a lista citada por Jesus (Marcos 7.21s e Mateus 15.19) a repugnância que tais “obras” provocam em Deus e nos homens.

O apóstolo Paulo enumera as obras da carne em grupos, para que fique fácil o entendimento de que algumas coisas têm ligações com outras. Vejamos:

O primeiro grupo é dos desejos sexuais ilícitos

Prostituição – Impureza – Lascívia

Prostituição é porneia (que juntamente com moichea – adultério) substituem o amor pelo egoísmo. A prostituição trata o corpo como uma “coisa”, portanto podendo ser usado ou vendido para que outros usem de qualquer maneira, em qualquer situação.

Adultério é moicheia. O adultério é a infidelidade para com o outro – podendo ser um ato sexual consumado ou apenas nos pensamentos (esta palavra está colocada aqui por conter em certos manuscritos).

Impureza é akathasia. Impureza sexual, ou seja, toda a extensão dos pensamentos, palavras ou ações sexuais impuras ou ilícitas.

Lascívia é aselgeia. O “a” é uma partícula negativa – ou seja, é o mesmo que dizer – sem limites, ou licença para fazer o que se deseja. Paixão lasciva ou desejo maligno.

O segundo grupo é da falsa religiosidade

Idolatria – Feitiçaria

Idolatria é eidolatreia. Junção de duas palavras eidolon (ídolos) e latreia (culto, serviço prestado). Latreia é o culto prestado a Deus e que em substituição a Deus era prestado para ídolos e, portanto “idolatria”. Qualquer atitude nossa que não adore a Deus (glorifique o seu nome) é idolatria. Paulo ainda fala que a avareza é idolatria (Colossenses 3.5), portanto nossos pecados capitalistas, de querer mais e mais o dinheiro e coisas no lugar de Deus é idolatria e será tratado de igual forma por Deus.

Feitiçaria é pharmakeia. Da mesma palavra para a qual traduzimos nossa “farmácia”, antes era a manipulação de drogas para cura de pessoas. A utilização (manipulação) de substâncias para conseguir mudar a realidade das pessoas. A feitiçaria é a manipulação de objetos (que se tornam sagrados com a consagração aos ídolos – idolatria) para que estes objetos tenham poder para mudar a vida das pessoas. Rosa benta, copo de água santo, etc.

O terceiro grupo é o das atitudes e práticas contra o próximo

Inimizades – Porfias – Ciúmes – Iras – Discórdias – Dissensões – Facções – Invejas

Inimizades é echthra. Literalmente antipatias ou falta de amor. É este não amor que conduz aos outros pecados deste grupo.

Porfia é eris. Briga, oposição, luta por superioridade. Resulta da inimizade ou falta de amor.

Ciúmes é zelos. É o cuidado exagerado por aquilo que lhe pertence e o desejo de possuir o que é do outro (Aristóteles).

Iras é thumos. Ira ou fúria explosiva que irrompe através de palavras e ações violentas.

Discórdias é eritheia. Pelejas. Ambição vã com o fim de ganhar ´seguidores´ de suas idéias egoístas e a cobiça do poder.

Dissensões é dichostasia. Ensinar outros sobre divisões. Fazer parecer que a palavra de Deus autoriza o pensamento.

Facções é hairesis. Heresias. Grupos divididos que destroem a unidade da igreja. O desejo desmedido por posições, prestígio e destaques que geram ´contendas´.

Inveja é fthonos. Antipatia ressentida contra outra pessoa que possui algo que não temos e queremos. Literalmente é desejo amargo ou ressentimento com o sucesso de outros. A inveja é o sentimento de infelicidade produzido pelo sucesso de outros.

O quarto grupo é o que trata das questões do domínio próprio

Bebedices – Glutonarias – Coisas semelhantes a estas

Bebedices é methe. Descontrole das faculdades físicas e mentais por meio de bebida embriagante.

Glutonarias é komos. Diversões (folias – festas em que tudo era permitido), festas com comida e bebida de modo extravagante e desenfreado, envolvendo drogas, sexo e coisas semelhantes.

Coisas semelhantes a estas – aqui poderia entrar a palavra phonos – homicídios. Em certas festas de bebedices e glutonarias eram praticados certos sacrifícios (homicídios) grande parte pela falta de controle do corpo e da mente por causa do álcool e comida em excesso. Alguém embriagado que ao dirigir mata outro com o seu carro é um exemplo desse excesso que causa a bebida e as folias (glutonarias).

Vimos as marcas da carne e a natureza carnal descrita obra por obra. Resta-nos pedir misericórdia de nossas vidas, pois a luta é tremendamente dura.

Deus nos dá meios para vencer a carne.

Veremos mais duas partes deste estudo teológico sobre a carne e o Espírito. Até lá!

Confira a continuação