Carta a Richard Dawkins (3)

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O “guindaste” Dawkins

Seu questionamento, Sr. Dawkins, nos leva, com a força de um guindaste, a outras perguntas. Por que o texto bíblico da criação deve ficar apartado do estudo das ciências, como sugere a explicação acima? Por que é que não devemos estabelecer concordâncias entre o plano da criação e a nossa ciência moderna? Uma e outra não se interessam em dar a conhecer o mesmo mundo? Aprendemos que é pela fé que se conhece o único e verdadeiro Deus, revelado pela Escritura. Mas, como é possível atribuir fé a uma revelação que não soa verdadeira? Uma ciência que, antes de ser revelada, criou o céu e a terra, em nenhuma hipótese poderia ser incipiente. Assim, é difícil aceitar um ensinamento que se pretende permanente, se ele não se deixa investigar com o mesmo rigor destemido que é utilizado, por exemplo, na astronomia ou biologia. Se a Escritura é, de fato, obra do mesmo Deus que fez o céu e a terra, não faz sentido tratá-la de forma marginal em relação a outras ciências –que não querem outra coisa senão entender o céu e a terra.

Criação (a)

Acreditar num Deus criador, anterior e superior ao mundo, não é tão difícil – como reconhece o Sr. Dawkins [1], talvez pela mesma razão que nos faz entender que a existência de uma casa requer a existência de alguém que a construiu. O problema é que a história bíblica da criação, conforme temos interpretado, de fato, é uma história que não tem muito sentido [2]. Inicialmente, no capítulo um, se diz que a obra da criação se desenvolve dos animais aos seres humanos – homens e mulheres; no capítulo dois, o desenvolvimento é outro: primeiro se cria o homem, depois os animais e por último a mulher. Nos primeiros três dias existem tardes e manhãs, mas ainda não existem astros no firmamento que possam ser relacionados a elas, o que ocorrerá somente no quarto dia. Ou, então, pretendendo descrever a criação do mundo, fala de coisas que não existem – ou que nos são estranhas, como por exemplo, um vapor que sobe da terra, e, por outro lado, deixa de citar coisas que de fato existem, e nos são bem conhecidas, como a chuva que, pelo contrário, cai na terra, ou a luta dos seres vivos pela sobrevivência, alterações do meio ambiente, doenças, etc.

Pecado (b)

E sobre o pecado? O que dizer do pecado que, parecendo não ter mais qualquer significado, se tornou, no dizer do Sr. Dawkins, uma preocupação pouco saudável, uma preocupaçãozinha chata para nossas vidas. Como explicar essa insignificância prática tão grande para o pecado, diante da importância teórica, tão elevada, que a Escritura atribui a ele?

Como aprendemos, o pecado significou a queda do homem e isto tem sido uma herança que deforma de alguma maneira todos os descendentes do primeiro casal, homens e mulheres. Sem considerar a pouco provável transmissão ao longo da linhagem masculina, fica a pergunta: se nascemos imperfeitos, pela herança de um pecado, de que tipo seria esse defeito -orgânico ou moral? Se for orgânico, devemos encontrá-lo em que parte do corpo? E, sendo assim, como poderia ser tratado ou corrigido? Ou então, se for moral ou ético, como poderia ser transmitido, infalivelmente, por tantas gerações, em todos os tempos e lugares?

Pode ser que haja pecado, é claro, quando uma pessoa adultera ou quando, num homicídio, tira-se a vida de outra pessoa; ou, até, quem sabe, quando hostilizamos o mundo em que vivemos – poluindo o meio ambiente, o que, de fato, pode trazer doenças e morte. Mas, antes disso, será que o próprio mundo não nos tem sido hostil? Quando chegamos ao mundo já encontramos à nossa espera a dor, a doença, a velhice e a morte. Será que seria correto afirmar que o homem arruinou o mundo feito, no início, muito bom [3] pelo criador? Teria o homem a capacidade de inventar a doença e a morte? A morte, aliás, aparece como necessidade própria da existência, imprescindível à vida, pois, como alimento o homem mata animais; como alimento, animais matam animais e, também, como alimento, vírus e bactérias matam homens e animais. E se o ecossistema que hoje conhecemos bem melhor, graças à lente das ciências naturais, precisa ser alimentado, ou mantido, pela morte, porque ela não figura dentre os feitos criativos de Deus na primeira semana?

Salvação (c)

Tem mais. Com o pecado herda-se também a culpa e a condenação diante de Deus. Por exemplo: na lei de Moisés proíbe-se que um homem mate outro homem e, entre outras coisas, proíbe-se também a infidelidade sexual que, aliás, o Sr. Dawkins, compreensivelmente, considera difícil de se cumprir [4]. Pois bem, num homicídio realmente faz sentido culpar aquele que matou, pelo pecado de tirar a vida daquele que morreu -e por isso merece condenação. O Novo Testamento, porém, ensina que um rápido olhar para uma mulher desejando-a [5], ou, mesmo, um simples xingamento imaginado contra um semelhante [6] são, ambos, tão igualmente pecado diante de Deus, quanto o homicídio que, efetivamente, tirou a vida de outra pessoa. Se no homicídio, de fato, cabe considerar culpa e condenação, como atribuir culpa, equivalente ao homicídio, a alguém que, num momento de ira, absolutamente normal e esperado para qualquer ser humano, mentalizou um xingamento inofensivo contra alguém? Pior: se o desejo sexual for obra de um criador, a fim de cumprir o mandamento de crescer e multiplicar-se [7], como atribuir culpa e condenação pelo desejo sexual que surge no olhar? Se não se pode ter culpa por um ato que nos é normal, e sem que haja qualquer dano real, porque ser culpado e condenado por isso?

E o que dizer da atribuição de culpa e condenação a um homem pelo pecado cometido por outro? Seria correto, ou divinamente justo, por exemplo, condenar o Sr. Dawkins pelo ato ancestral de Darwin? Por que deveria o Sr. Dawkins pagar pela culpa de Darwin em desobedecer à teologia do século dezenove, quando optou pelo fruto original do naturalismo? Provavelmente, por isso, o Sr. Dawkins não deve ser culpado ou condenado. Espera-se de um julgamento justo, que cada um seja o responsável, culpado ou não -condenado ou não, pelos atos que cometeu, de acordo com o seu respectivo universo de opções.

Portanto, se a herança do pecado, da culpa ou condenação, não deve ser estendida a todos os homens; e se não há, também, como atribuir culpa ou condenação, por atos normais, que não causam qualquer dano ao próximo, qual a finalidade da salvação? Será que o que nos resta é desistir, então, de tudo e seguir o ateísmo racionalista, pregado tão insistentemente pelo Sr. Dawkins? Penso que não; acredito que talvez não haja, ainda, motivo para desesperos.

De Darwin à loucura

Pelo contrário. Se a teologia perdeu, no século dezenove, quando Darwin trocou-a pelo naturalismo, ganha agora, no século vinte e um, com a chegada do Sr. Dawkins ao areópago teológico: seu enorme saber o levou à loucura [8]. Ao chamar a atenção para a importância da incompatibilidade, insuportável, entre o simbolismo de Adão, de um lado, e a veracidade do Novo Testamento, de outro, o Sr. Dawkins presta-nos, na realidade, um imenso auxílio. Selecionando e comentando os principais temas do cristianismo – criação, pecado e salvação – ele não apenas identifica nossos equívocos de interpretação, mas, vai além: mostra, com precisão assustadora, como eles têm sido perniciosos na leitura e interpretação de toda a Bíblia.

Antes de chegar à loucura, o Sr. Dawkins conta que costumava ouvir uma vozinha [9], que vinha do seu íntimo, dizendo-lhe que, diante de coisas incompreensíveis, é preciso admitir a ignorância e até mesmo exultar na ignorância, já que ela é um desafio para conquistas futuras; ou, então, que deve haver uma explicação totalmente cabível. Mas sou ingênuo demais, ou pouco observador e pouco criativo demais para pensar nela [10]. Se com relação à doutrina do cristianismo a vozinha nada falou para ele -até agora, em seu livro ela tem “gritado” para nós.

Fato, interpretação e ciência

Seja lá como for, o Sr. Dawkins tem feito a parte dele naquilo que ele se propôs a fazer; temos nós também que fazer a nossa, naquilo que se espera de nós. Aliás, acredito que possa chamá-lo simplesmente de Dawkins; não faz sentido chamá-lo de Sr. sem empregar o mesmo tratamento para Paulo, Agostinho e Freud, por exemplo.

Partindo, assim, de nossa ignorância e ingenuidade, talvez possamos dissecar na argumentação de Dawkins, três componentes distintos para cada um dos temas selecionados: o primeiro refere-se ao fato em questão, que é o objeto da descrição bíblica (o evento da criação -com o paraíso e Adão-, o pecado e a salvação); o segundo refere-se aos textos que tratam do fato questionado (as narrativas bíblicas, desde a criação, no Gênesis, até a salvação no Novo Testamento); e o terceiro, a ciência que podemos ter, do respectivo fato, a partir da interpretação escolhida (ou, a maneira como imaginamos, ou entendemos, o evento da criação, a existência do pecado e o papel da salvação). Portanto, se adotamos a interpretação simbólica, a ciência do fato será uma; se adotamos a interpretação literal, a ciência do fato será outra. É como se cada tema representasse um conjunto diferente de fato a ser fotografado e a imagem obtida na fotografia.

A conclusão a que Dawkins chega (a ciência que tem do fato) é que Adão não existiu (ou o texto não reporta à verdadeira existência de Adão), porque adota a interpretação simbólica [11]. Entretanto, provavelmente, uma coisa não tem nada a ver com a outra. O que Dawkins faz é negar a existência do fato porque a máquina fotográfica que utiliza não consegue registrar adequadamente a fotografia do fato. Isto é significativo porque mostra a importância da interpretação do texto na busca pela ciência do fato bíblico. Não se poderá voltar no tempo, por exemplo, e presenciar a veracidade dos eventos, nos diálogos entre Deus e Adão ou, muito menos, inventar uma imagem qualquer para o fato -como se inventam imagens de fadas – esperando que ela seja aceita, ou empurrada obrigatoriamente, ainda que não carregue dentro de si o convencimento próprio da verdade.

Dawkins, ao escolher a interpretação simbólica chegou à loucura de pedra porque a ciência que conseguiu ter dos fatos, realmente, não faz o menor sentido. E esse parece ser, naquilo que nos interessa, a utilidade do livro: reconhecer e divulgar, como fez muito bem, que a interpretação simbólica do texto é incompatível com o entendimento adequado dos fatos bíblicos. Isto significa dizer, então, que só restaria a Dawkins, e a nós também, a leitura fundamentalista, ou literal, do texto? Talvez nem tanto, mas é preciso dizer que, assim, chegamos a outro problema, mais antigo: foi justamente por causa da incapacidade da interpretação literal, em responder adequadamente às dúvidas de um questionamento mais criterioso, que a interpretação simbólica surgiu e se firmou. Contudo, é confortante imaginar que, também aqui, possa haver, mais coisas entre o céu e a terra, do que sonha nossa vã filosofia, conforme a lembrança de Hamlet, pelo biólogo J.B.S.Haldane, quando fala da estranheza relacionada ao entendimento do universo [12].

Algumas regras

Se, entretanto, pretendemos buscar uma ciência bíblica mais satisfatória, é necessário verificar, inicialmente, com quais certezas iremos trabalhar. Seja na (re) leitura do texto, na valorização dos achados ou para qualquer sugestão de interpretação, será preciso que ela seja aprovada, não apenas pelo confronto com a Escritura e com o mundo que conhecemos mas, acima de tudo, pelo crivo do entendimento.

Não devemos aceitar algo como verdadeiro, apenas porque sempre fora aceito como verdadeiro [13] (… se tem sido assim, é porque tem de ser assim…). Se Deus nos deu a capacidade de compreensão, devemos utilizá-la, para entender aquilo que nos é dado a entender; assim, se os textos existem para que sejam entendidos é preciso procurar entendê-los.

Não devemos nos restringir apenas aos textos específicos de cada tema, mas é preciso buscar na Bíblia inteira elementos que possam auxiliar na compreensão dos eventos em questão (o Antigo Testamento deve ser utilizado para se entender a salvação do Novo Testamento e, vice-versa; o Novo Testamento deve ser utilizado para se entender a criação e o pecado descritos no Velho Testamento).

Se a Bíblia diz ser a Palavra de Deus e se Deus diz ser a verdade, então o que está escrito deve ser verdadeiro; se, ao contrário, o texto não parecer verdadeiro é porque, neste caso, não se tem conseguido entendê-lo adequadamente e, sendo assim, é preciso insistir na sua compreensão, ao invés de descartá-lo como falso.

Da loucura à pedra

Se Deus criou o mundo e criou também a Bíblia, então ela deve permitir ser investigada como tem sido investigado o mundo hoje, pelos métodos de entendimento que estão ao nosso alcance na interpretação:

a) é preciso que haja consistência nas afirmações: se uma coisa é, então de fato ela é; ou seja, se alguém diz que carrega uma pedra não devo imaginar que carrega uma planta;

b) coerência na exposição: se uma coisa é, deverá continuar sendo o que é, e não outra coisa – uma pedra será sempre uma pedra e,

c) conseqüência na sucessão dos eventos: se deixar de ser o que é, então terá de ser outra coisa: uma pedra moída não será mais pedra, e sim areia.

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Notas:

[1] Deus, um delírio; p. 239: “Bloom também sugere que temos uma predisposição inata para ser criacionistas. A seleção natural ‘não faz sentido intuitivamente’”.

[2] Freud (Esboço de Psicanálise, parte I – cap. V, A Interpretação de Sonho como Ilustração), se refere aos sonhos de uma tal maneira que lembra, em muito, a impressão que temos depois de uma leitura superficial do texto da criação, em Gênesis 1 – uma sensação que destoa, francamente, da nossa percepção da realidade: “Os sonhos, como todos sabem, podem ser confusos, ininteligíveis, ou positivamente absurdos (;) o que dizem pode contradizer tudo o que sabemos da realidade, e comportamo-nos neles como pessoas insanas, visto que, enquanto estamos sonhando, atribuímos realidade objetiva ao conteúdo do sonho” (p.179). E, em se tratando de entendê-los, no trabalho de interpretação, cita, duas páginas adiante, outra característica que lembra, também, as dificuldades relacionadas à interpretação da história de Gênesis 1: “Acima de tudo há uma tendência impressionante à condensação (…) em geral, o âmbito do sonho manifesto é extraordinariamente pequeno em comparação com a riqueza de material de que se originou”. De fato, no início do Gênesis, a história da criação é contada em apenas um capítulo – ou menos de duas páginas; no final do Gênesis, a história de um único homem, José, mereceu mais de dez capítulos – ou bem mais que dez páginas. Ver, também, mais adiante, as notas 57 e 58.

[3] Gênesis 1,31. As citações bíblicas são da Bíblia de Jerusalém.

[4] Deus, um delírio: p.314.

[5] Mateus 5, 27 e 28.

[6] Mateus 5, 21 e 22.

[7] Gênesis 1, 28.

[8] Atos 17, 19; 26, 24.

[9] Deus, um delírio: pp. 171 e 175.

[10] Deus, um delírio: p.314.

[11] Encontramos em H. Renkens (Creacion, Paraíso y Pecado Original, segun Genesis 1- 3; p. 11), uma constatação dramática do discurso de Dawkins: “El mundo del paraíso, tomado literalmente y considerado a la luz de la ciencia profana, presenta um problema insoluble, um falso problema. Pues no es um mundo que haya existido em la realidad: es um mundo imposible. (…) El Paraíso, pues, em la forma material em que lo describe la Bíblia, no há sido nunca uma realidad”.

[12] Deus, um delírio: p. 461.

[13] Quem dera conseguisse seguir fielmente o método sugerido por Descartes; de qualquer forma, não tê-lo como alvo, seria um pecado: “1) Não aceitar coisa alguma por verdadeira que não (se) conheça como evidentemente verdadeira; 2) Dividir as dificuldades em tantas partes quanto possível; 3) Conduzir por ordem seus pensamentos, indo por etapas, do simples para o composto; 4) Fazer enumerações tão complexas e revisões tão gerais que (se) tenha a certeza de nada omitir” (René Descartes, Discurso do método, p. 24).

por Jorge Luiz Sperandio