Teologia para entendimento e prática de uma evangelização integral, contextual e transformadora

Assisti ontem ao filme Anjos e Demônios, de Dan Brown e vi, num contexto particular, uma fé baseada em misticismo, muito ritualismo e crenças a respeito de uma política eclesiástica que nutre vitórias e derrotas baseadas num pragmatismo exacerbado e numa visão de reino e poder como sendo o centro da Igreja – Jesus pareceu-me, como legado a mera referência, pois líderes ou crentes tem fé na igreja e não mais em Jesus. É um filme, por isso comparação entre realidade e ficção deve ser estabelecida, mas fiquei pensando se a fé não está – não somente em solo católico, mas em toda a cristandade indo contra o princípio da fé pura e simples em Jesus para uma fé na fé; fé nas metodologias; fé nos eventos; fé na tradição religiosa; fé nos líderes; fé em si mesmo, como alguém capaz de ser mesmo sem Cristo; fé no crescimento da igreja como sendo uma clara demonstração de que tudo vai bem.

Como missionário, sempre me preocupo como a igreja tem entendido e agido em sua forma missionária de ser e me pergunto: como agir missionariamente numa época tão voltada pra o intra, para o particular, para as necessidades individualizadas?

O contexto envolvido no “mundo” de hoje, altamente secularizado e hedonista é mais complexo para que a igreja atue do que em outros contextos de missão que ainda permanecem com menor parcela de influência do gene da pós modernidade; por isso é necessário empreender uma leitura cultural séria, utilizando-se diversas ferramentas como a Antropologia, Sociologia, Economia, Psicologia, Pesquisas Geocensitárias, História, Marketing dentre outras para estabelecer a base do conhecimento do perfil, mas também da história, da movimentação intereligiosa antes mesmo da desistência da religião ou da não opção por esta. Esta “leitura deve gerar uma inteligibilidade da vida social” (Bordieu: 1963) e é justamente todo este aporte necessário que faz a missão da igreja em seu solo mais difícil que além mar, pois, aqui, parece a nós, algo muito simples ser testemunha de Cristo. Basta convencermos as pessoas que a religiosidade é tudo e que ter fé é pertencer a um grupo; basta ser parte; não é necessário mais sacrifício – isto tudo está muito fora de moda e não faz mais a cabeça de ninguém. O que é realmente importante é viver em grupo, ter comunhão, participar dos eventos religiosos, entregar fielmente dízimos e ofertas, cantar e não deixar que problemas interfiram na vida cristã, pois esta deve estar isenta de dores, solavancos, altos e baixos e necessidades. As vezes, tenho a nítida sensação de que a Igreja de Laodicéia vive em nós!

Como ser uma igreja missional num mundo hedonista e marcado por uma espiritualidade hipócrita e farisaica além de descomprometida com o outro? Os desafios que a cultura brasileira impõe sobre a espiritualidade cristã são tremendos principalmente no que tange a separação entre uma espiritualidade sadia e a teologia. Tomás de Aquino, no fim da idade média, propõe que o relacionamento com Deus é algo separado do conhecimento mais intelectual, ou sistemático a seu respeito, levando a teologia para uma categoria que ela nunca pertenceu: apenas de ciência desprovida de relação íntima com Deus e incapaz de provocar no ser humano um avivamento amoroso em relação a Deus. Cria-se então um abismo que gera certo conforto na ausência de cobranças sobre a preocupação com a vida e vontade de Deus sobre a minha vida. Deus passa a ser um objeto de estudo e o relacionamento com ele algo para mentes menos esclarecidas. Esta visão separa inclusive a própria teologia de uma missiologia aplicada ao contexto, porque evoca um conhecimento intelectualizado de Deus e assim, abrindo mão de um entendimento prático da aplicação da intimidade com o próprio Deus estudado.

Quero propor algumas pistas para um entendimento mais contextualizado da missão para que essa compreensão se transforme em guia para uma ação missionária eficaz e eficiente que glorifique a Deus e cumpra sua vontade – isto é: missões!

Em primeiro lugar, quero declarar que há uma guerra em andamento, uma batalha que está sendo travada e que tem o poder de confundir muitos e levar outros tantos para a oposição de que a batalha realmente exista. Não é uma luta contra carne e sangue, mas é uma batalha espiritual – aqui faço devidamente uma ressalva de que por espiritual não quero dizer astral, quando “saímos do corpo” como se houvesse a possibilidade de uma batalha puramente no mundo invisível – porém, é uma batalha visível no dia a dia, participamos dela o tempo todo, sentimos no corpo, na mente e no coração as setas vindas do campo do inimigo e é uma luta conta o mal estabelecido. Paulo argumenta coerentemente em Efésios capítulo 6 sobre a batalha em que o crente está inserido e diz que lutamos contra os kosmokratoras (a expressão que ele usa em Efésios 6.11-12 é: “dominadores deste mundo tenebroso” que, traduzindo para uma realidade mais próxima do nosso entendimento, seriam aqueles seres que planejam e sabem como fazer o mal, tendo informações detalhadas para um planejamento estratégico do mal que envolve nossas vidas em suas íntimas considerações – são os burocratas do mundo maligno que fazem os planos de destruição de tudo o que é bem sobre a terra trazendo injustiças, desvios, corrupções pessoais e estruturais e tudo o que pode em longo prazo redundar em benefícios para que o mal prevaleça.

Imaginamos que a batalha espiritual aconteça sempre no “mundo espiritual” e então tentamos empreender somente ações espirituais, mas a grande confusão reinante traz justamente um grande mal para a batalha, pois guerreamos a guerra certa com as armas erradas.

Neste contexto de guerra é fácil cairmos em tentação de espiritualizarmos (ou talvez levarmos a batalha para um terreno onde ela não poderá acontecer) toda a missão que nos está proposta, entretanto, Efésios 6.20 coloca nosso pé novamente no chão e devemos então enxergar corretamente isso – Paulo está numa prisão, algemado, limitado, sozinho, abandonado, se sentindo vil e desprezado – mesmo assim ele deseja sair da prisão para abrir sua boca e proclamar o nome de Cristo entre as pessoas. Isso nos lembra então que a nossa luta não é contra carne e sangue, mas é pela libertação da carne e do sangue – é uma luta contra a injustiça, contra os falsos relacionamentos, contra a deturpação da verdade e consequente levante para o erro, contra a falsidade, contra a hipocrisia, e tudo isso num nível muito mais íntimo do que gostaríamos, porque a luta principalmente ocorre e acontece entre as paredes do meu e do seu coração – aí as batalhas são travadas e as vitórias alcançadas e as derrotas vividas.

Não imaginamos que a batalha possa ocorrer desta forma. Imagine que em diversos setores e segmentos da vida humana são atingidos por um mal que os corrompe e por isso pensemos que a nossa ação deve ser de “expurgar” o mal que há nestas áreas. Empreendemos reuniões de oração, palavras de ordem são ditas, decretando a falência do mal e muito mais tem sido feito.

Sinceramente, porém, penso que muito mais precisa ser feito. A sincera vida com Cristo requer mais que isso, mais que palavras, requer mudanças e estas são radicais. Há um conjunto de pessoas em eterminado setor – tomemos a política como exemplo e neste setor da vida humana existem regras do jogo, que imperam acima até mesmo das leis da ética e moralidade. Há uma estrutura em jogo e os jogadores não estão dispostos a abrir mão dos benefícios deste meio de vida. A corrupção muitas vezes é meio de vida. A palavra em grande parte do tempo é apenas uma convenção. A amizade é vista como referência de onde se está e, portanto mutável. A mudança dos ideais tem mais a ver com o que se pode conseguir por isso do que com a defesa de necessidades de uma sociedade que se representa. E muito mais… Com o intuito de melhorar tudo isso podemos empreender uma guerra no mundo espiritual, mas somente isso não surtirá efeitos coerentes e duradouros. É preciso juntar forças e estabelecer transformações.

Os corações dos envolvidos devem ser transformados. A ética precisa ser recolocada no lugar correto e a palavra tem que valer como sim, sim ou não, não. Para que tudo isso aconteça orações e palavras de ordem somente não bastam – Deus nos fez “sal” e “luz” do mundo não para que gritássemos impropérios conta o mal simplesmente, mas que transformássemos a realidade onde estamos inseridos e para isso pagando muitas vezes preços altíssimos.

Nossa vida, nossa nação, nosso mundo precisa de ação espiritual de crentes que oram, que jejuam, que se incomodam e choram ante a ação do maligno, mas também que agem, influenciando pessoas a pensar corretamente, influenciando setores a modificar ações que tendem para o mal, crentes que sejam agentes de transformação de realidades, olhando para o que a Bíblia sempre tem a dizer, formulando e agindo contra toda e qualquer forma de maldade e impiedade.

Oscar Cullmann diz que “já foi ganha a batalha decisiva. A guerra, porém continua até o dia da vitória” (Salvation in History, citado no Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento). Esta guerra iremos sempre travar espiritualmente, mas com os pés no chão (leia novamente Efésios 6.20 e veja onde Paulo estava ao escrever sobre este assunto) e nossas ações de santidade valem tanto quando nossas orações, pois Deus usa aquilo que fazemo para autenticar a verdade que sai de nossos lábios.

O professor Jun Vencer em seu seminário sobre Jeremias 29 (A Transformação da Cidade – material colhido em aula de pós-graduação na Faculdade Teológica Sul Americana, Londrina, PR) propõe que este mal, estabelecido por Paulo em sua carta aos cristãos de Éfeso e demais igrejas da época, interage e age diretamente nas estruturas as quais corrompe e degenera, trazendo dor, maldade, dolo, injustiça e muito mais.

Existem realidades invisíveis e forças espirituais que influenciam eventos históricos, assim estruturas que não são boas ou más, influenciadas por estas realidades invisíveis se tornam estruturas demoníacas; de opressão, tirania, medo e injustiças. A evangelização e a vida cristã normal requerem uma igreja que encara o mundo visível com suas necessidades, mas também o mundo invisível que modifica o bem em mal corrompendo as estruturas e agindo diretamente nelas e através delas.

Estes elementos malignos formam uma rede em oposição ao reino de Deus, liderados pelos kosmokratoras que citei anteriormente e assim agem como anticristo.

Jun Vencer em sua aula na FTSA mostra que o “mal estrutural” gasta por ano mais de 9 trilhões de dólares, com financiamentos de crimes, armamentos militares, fraudes financeiras, apostas, crime organizado, alimentos perdidos para pragas urbanas (ratos, por exemplo), tabagismo, sonegação de impostos, drogas ilegais e roubo. Isso é 32% do produto interno bruto mundial. Segundo o professor Jun Vencer se este valor fosse reduzido para 6% sobraria dinheiro para abrigar todos os pobres do mundo com moradia, educação, comida e água.

A pergunta que deve ser feita nesta altura é: Será que ser “sal da terra” e “luz do mundo” se destina somente as tentativas de “salvação de almas” ou será que estas duas condições do cristão, o colocam como um agente de transformação da realidade em que ele mesmo vive?

Mesmo entre aqueles que crêem apenas primeira parte, a salvação de almas para o mundo espiritual requer um entendimento correto do contexto onde estas pessoas estão para que possa ser pregado de forma inteligível e além disso, o trabalho não será frutífero a menos que a Igreja avance contra as portas do inferno que não resistirão a ação de Cristo que a constrói! Não imaginemos porém que para ir contra as portas do inferno podemos deixar de lado o mal que adentra em nossas estruturas, quer sejam pessoais, relacionais, quer sejam públicas.

Fazer missões é, de maneira bem simples, cooperar com Cristo na construção do seu Reino – assim, o Reino de Cristo, que é opositor direto do reino deste mundo será fator preponderante para a ação missionária da Igreja e quando esta age, o reino das trevas não prevalece. O prevalecimento deste mal acontece na justa medida em que nos calamos, omitimos nossa vida da vida do mundo pensando que seremos contaminados – o contrário é a verdade: nós fomos chamados neste contexto secularizante justamente para ajudar na transformação desta realidade: isso é missões! Nós devemos ser o fator que contamina o mundo com a justiça, com o amor, com a misericórdia e compaixão, não somente de Deus para nós, mas de Deus em nós na direção dos outros!

Quero analisar alguns temas importantes para entendermos melhor sobre esta dominação tenebrosa de todo um contexto sócio-cultural, olhar de frente estes assuntos e compreender um pouco mais o campo de nossa missão num mundo cada vez mais pós-moderno.

Que Deus nos ajude!

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