A história da criação, início e separação dos dias (1)

I. No princípio, o equívoco da intuição.

1. Interpretações literal e simbólica

A história da criação parece não permitir compreensão satisfatória, nem pela interpretação literal – ou imediata do texto, nem pela simbólica – que a equipara aos mitos da antiguidade. As duas abordagens, utilizando-se da percepção comum do tempo[1], não conseguem explicar o desenvolvimento dos dias na primeira semana[2].

2. Tarde ou Manhã?

Tal como se expõe no artigo Does the Day Begin in the Evening or Morning?[3], este trabalho concorda que a descrição dos dias, na história da criação, permanece obscura, resistindo aos esforços de interpretação[4].

3. A representação intuitiva

Propõe, entretanto, que as menções E houve uma tarde e uma manhã – marcando a composição de cada dia criativo, continuarão “estranhas” à nossa compreensão[5], enquanto aplicarmos – em sua leitura, o “pano de fundo” da representação intuitiva que formamos – dos dias e do tempo, adquirida pela via dos sentidos[6].

4. Dias e tempos diferentes

Analisa os principais componentes do dia – com o auxílio da teoria da relatividade[7] e, verificando como é possível existirem dias e tempos diferentes, reconhece, para o mundo criado, duas realidades temporais distintas. Na primeira – antes do pecado, se expressa o andamento construtor do mundo e, na segunda – depois do pecado, se apresenta a corrupção trazida pela morte – experimentada nos dias em que vivemos.

Refere as descrições dos dias – conforme se encontram em Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio, a determinada estrutura de referências – que se identifica neste mesmo conjunto de livros; em seguida, interpreta o primeiro capítulo do Gênesis como expressão inicial desse ordenamento descritivo – que pode indicar, para a primeira semana, uma concepção diferenciada do tempo.

Leia a parte 2

Notas:

[1] Agostinho assim se refere à composição dos dias na primeira semana: “Vemos que os dias conhecidos não têm tarde, senão em relação com o pôr do sol, nem manhã, senão em relação com seu nascimento. Pois bem, os três primeiros dias transcorreram sem sol, pois sua criação, segundo o Gênese, se deu no quarto dia. (…) Mas de que luz se trata e de que movimento alternativo? Sejam quais forem a tarde e a manhã feitas, é certo que nos escapam aos sentidos e, não podendo entendê-lo tal qual é, deve, sem a menor vacilação, ser crido” (Cidade de Deus, livro XI, capítulos VI e VII, vol. II, pp. 24 e 25; citado também em Gênesis um e a explosão da vitrine, Revista Vox Scripturae, p. 115).

[2] Nossa experiência no mundo produz o conhecimento intuitivo que temos dele – ou a idéia que formamos sobre as coisas que nos são familiares: assim conhecemos o sol, o dia, o tempo, a chuva, a morte, etc. A partir deste ponto de vista não se consegue compreender a história da criação – já que, parecendo incompleta, não descreve o cenário natural que nos tem sido familiar: na descrição dos seis primeiros dias, por exemplo, não se usa a palavra “sol”, a chuva não existe e, também, a morte não é citada – ainda que o propósito da narrativa seja, justamente, descrever a criação dos céus, da terra, dos dias e do tempo.

Como se verá mais adiante, não se consegue “captar” bem a imagem daquilo que o texto pretende informar; ou, então, de modo inverso, é a narrativa que – parecendo completamente alienada do mundo sensível, “não corresponde” às expectativas de um leitor adulto. Provavelmente por estas razões, o texto tem sido “marginalizado”; qualificado como história para crianças, ou, quando muito, aceito como outro mito das “origens” – um “épico” da antiguidade. Assim classificada – como produto de fábulas que fantasiaram o surgimento de povos no passado, não há como esperar, é claro, que a história da criação se torne relevante para o homem de hoje – impregnado pelo saber tecnicista, provado e aprovado, cada dia mais – p’rá lá de moderno. Talvez pudéssemos dizer, repetindo Einstein e Infeld: “É a necessidade dura e não a especulação e o desejo de uma novidade o que nos força a alterar o velho ponto de vista clássico” (A Evolução da física, p. 230).

[3]H. R. Stroes, Does the Day Begin in the Evening or Morning? [Começam os Dias à Tarde ou pela Manhã?], Vetus Testamentus, 1966.

[4] Stroes, numa revisão da literatura, “discute os diversos pontos de vista sob duas teorias básicas: de um lado, com a teoria da noite, estão as opiniões que advogam o início da contagem dos dias pelo pôr-do-sol; e de outro, com a teoria da manhã, estão as opiniões que defendem o início da contagem dos dias pelo nascer-do-sol. O artigo mostra que as duas teorias reúnem pontos favoráveis e desfavoráveis, não havendo lugar, portanto, para uma conclusão definitiva, em prol de uma ou de outra teoria” (cf. Tarde e Manhã em Gênesis 1, os dias, o tempo e a relatividade, p. 27).

[5] Se o texto dissesse Houve uma manhã e uma tarde…, seria mais fácil entendê-lo, o que, também, tornaria desnecessária essa discussão – já que é assim que reconhecemos a existência do dia: vindo depois da noite, inicia-se no começo da manhã e termina no final da tarde.

A forma como o texto se desenvolve, contudo, parece “embaralhar” palavras e idéias – que não se conectam, dificultando a identificação daquilo que se quer dizer. Por exemplo – e já indo direto ao centro do problema: ao afirmar que houve uma tarde e uma manhã…, depois da criação da luz – chamada “dia” e da separação das trevas – chamadas “noite”, imagina-se que a intenção do texto seja apresentar, justamente, a primeira existência do “dia”. Mas, se temos que entender (como tem sido necessário entender – sob a noção comum do tempo) que a expressão uma tarde significa que o primeiro dia passou e acabou; e, também, que a expressão uma manhã, significa que a noite seguinte passou e acabou, então, a narrativa não cumpriu aquilo que lhe cabia relatar – pois, no caso do dia, “negligenciou” a existência inteira da luz – dando maior valor apenas ao que restou dela – no final do dia (tarde); e, no caso da noite, simplesmente “pulou” toda a escuridão que a caracteriza, preferindo citar, no extremo final da noite, mais uma manifestação da luz – a manhã.

Fica, então, a pergunta: de que adiantou a escuridão receber, no início da narrativa, o nome próprio e distintivo, de “noite”, se logo a seguir – referindo-se a ela, o texto prefere mencionar novamente a luz? – que, sendo oposta à noite, nada tem a ver com ela? Mais: se for realmente assim, como teríamos que entender as duas primeiras noites? – pois, dessa maneira, a noite que sucedeu a primeira luz (e, por isso, pertencente ao segundo dia) ficou “incluída” na composição do primeiro dia. A disposição das palavras, portanto, parece não corresponder à “idéia” indicada na progressão da leitura – que aponta para uma seqüência inversa no reconhecimento da noite, qual seja: a escuridão que deve fazer “par” com o primeiro dia-luz (na composição do primeiro dia), é a escuridão que, ao ser chamada “noite”, já existia nas trevas que precederam à luz – que, por sua vez, quando surgiu, completou a existência do “primeiro dia”.

[6]Igor Novikov diz que, de acordo “com as nossas noções intuitivas o tempo é duração – aquela coisa universal que é inerente a todos os processos. É semelhante a um rio que flui continuamente. (…) Todos os processos, como nos parece, estão submersos no rio do tempo absoluto cujo fluir nada pode influenciar. Segundo a nossa representação intuitiva, deste rio podem ser retirados todos os processos, continuando apesar disso o tempo fluir como se de um comprimento vazio se tratasse. Assim se pensava no campo da ciência na época de Aristóteles, na época de Newton e também mais tarde, até aparecer Einstein. (…) Só Einstein demonstrou que não existe qualquer tempo absoluto. O fluir do tempo depende do movimento e, o que é neste momento importante para nós, do campo gravitacional” (Os buracos negros e o universo, p. 21).

A teoria da relatividade parece trazer, portanto, elementos que permitem tratar do desafio proposto por Agostinho, na pergunta – já referida anteriormente: “Mas de que luz se trata e de que movimento alternativo?”. De resto, na falta da relatividade – ou diante das dificuldades que se apresentam, a melhor resposta, entretanto, continua sendo a de Agostinho – também já citada: “Sejam quais forem a tarde e a manhã feitas, é certo que nos escapam aos sentidos e, não podendo entendê-lo tal qual é, deve, sem a menor vacilação, ser crido”.

[7] Nos dizeres de Einstein e Infeld, “a teoria forma uma estrutura geral que abrange todos os fenômenos da física”, lembrando que a “divisão em tempo e espaço não tem significado objetivo algum, porquanto o tempo não mais é ‘absoluto’”. “A teoria da relatividade surge dos problemas do campo. As contradições e inconsistências da velha teoria nos forçam a atribuir novas propriedades ao contínuo de espaço-tempo, ao cenário de todos os acontecimentos de nosso mundo físico” (A Evolução da Física, pp. 163, 171, 199). Segundo Igor Novikov, a “essência desta teoria consiste em ela ter ligado de modo inextricável, as propriedades do espaço e o fluir do tempo com as forças da gravidade” (Os Buracos Negros e o Universo, p. 20).

por Jorge Luiz Sperandio