Documentário sobre Tubarões

Enfim, só! Absolutamente só, com o perdão da redundância. A esposa e as crianças haviam pegado a estrada com o irmão dela, rumo a Goiânia, onde veriam alguns parentes. Ele ficara em Brasília, cidade dos que amam a solidão, o refúgio, a fortaleza impenetrável das paredes de um apartamento. Era sexta-feira, eles só retornariam na terça. Embora fossem um casal feliz, ele sentia que havia algo de legítimo em querer estar na companhia de si mesmo, até porque não seria por tanto tempo. Momento bom para esfriar a cabeça, ouvir alguns CDs que só ele curtia, ler um livro, ter seu momento com Deus e com suas próprias emoções. Afinal, todo mundo precisa disso, qual seria o problema? Na sexta-feira, então, tudo tendia às facilidades. O chefe o dispensara mais cedo meia hora, enfrentara o trânsito terrível que às sextas-feiras parece ainda pior e… enfim, só!

Daí teve uma idéia: alugar um filme. Quem sabe, daqueles de suspense, ou policial, ou terror, um filme que normalmente não alugaria quando Vera – esse era o nome da esposa – estivesse junto. O nome dele, quase esqueço: Clemílson. Mas voltemos a ela, que tinha preferência por drama, romance, filmes de mulher. O instinto masculino de nosso personagem pedia ação, suspense, emoções fortes. Ainda na euforia de uma lua de mel consigo mesmo na base do “eu me amo”, dirigiu-se à locadora, que ficava no comércio da quadra. Um filme alugado, uma pizza entregue em casa, um refri de dois litros, tudo ótimo para um programa solitário. Aí estava um sujeito que se curtia, que mal existe nisso?

Enquanto caminhava, um pensamento feito fagulha tocou algum lugar de seu quase consciente. Refutou de imediato: “tá amarrado!” Mas a coisa insistia em algum lugar da cabeça e parecia querer desenvolver, tomar forma e, quando menos esperava, Clemílson se viu duas quadras adiante, em outra locadora que não a de costume, prestes a tornar realidade aquilo que, com tanta veemência refutara minutos antes. A outra locadora manteria o anonimato. Havia ficado sócio, mas nem ele nem Vera haviam uma só vez na vida ido lá alugar filme. Nada melhor para o momento. E o que parecia tão difícil, ou mesmo impossível, estava pra acontecer: alugaria uma fita pornô.

Lá estava Clemílson, no subterrâneo da locadora de vídeo, seção destinada aos filmes que – por discernimento do dono da loja – não deveriam ficar à vista de crianças. Eram tempos de videocassete, e as capas das fitas sugeriam as mais diversas situações, algumas das quais possivelmente fariam corar até o Jece Valadão ainda em sua época na Embrafilme, vendendo a imagem do machão cinematográfico. O instinto o induzia a dar o passo, ao mesmo tempo em que uma voz pequena, interior, fragilizada, tentava dissuadi-lo. O que Vera pensaria se voltasse e o encontrasse assistindo a uma fita daquelas? Como ele mesmo se sentiria depois? Como se sentiria com Deus, e como Deus se sentiria a seu respeito? E as crianças?

Mas, por outro lado, que mal haveria nisso? Poderia retirar algum ensinamento dali, do que não se deve fazer, de como o mundo jaz no maligno… também, de mais a mais, a Vera vinha andando tão ocupada, não lhe dava mais a atenção de que ele tanto precisava. Nessa semana mesmo, antes de viajar, nem deu prioridade para uma noite de amor. Só pensava nas coisas sérias da vida, não solicitava mais seus “serviços” e, quando ele mesmo tinha um desejo, lá estava ela abrindo a boca de sono, tirando dele até a graça de propor qualquer coisa… viravam-se um pra um lado, outro pro outro, ele amargando uma ira calada, sufocada, a autonegação de, mais uma vez, ter de esperar por outro dia, pra talvez, quem sabe, enquanto ela dormia feito uma pedra… e esse dia, afinal, não chegara antes de ela viajar, totalmente distraída, com a cara pra cima, envolvida em coisas “mais importantes”. Por isso mesmo, o apóstolo Paulo afirmava, com tanta ênfase, que um não deve negar ao outro o que lhe é devido. Vera deveria ler mais os ensinamentos de Paulo… ela que era uma mulher tão espiritual, deveria voltar um pouquinho, pôr os pés na terra e ver o mundo à sua volta. Por outro lado, sua consciência latejava: daí a aventurar-se numa pulada virtual de cerca e perder-se visualmente nas curvas de outra mulher…

Clemílson suava. Aliás, fazia calor, mas o seu suor tinha o tempero da angústia misturada com uma excitação perversa e curiosa que lhe corroía o corpo. Pegou a fita. Levou até o rapaz do balcão. O balcão era lá em cima, e o rapaz o atendeu com excessiva naturalidade, se é que isso existe. Após consultar o computador, disse:

– Sr. Clemílson, o senhor não costuma alugar por aqui, costuma?

– Não muito – respondeu Clemílson com voz falha.

– Ah… deixe-me confirmar. O endereço ainda é…

– O mesmo endereço.

– Telefone…

– O mesmo – Clemílson apressou-se em dizer o número.

Felizmente, a capa da fita não trazia a escandalosa imagem que Clemílson vira lá em baixo, e sim um impessoal papel branco com o nome da locadora, igual pra todo o mundo. O nome do filme vinha em letras pequenas, quase não dava pra ler. O rapaz do balcão, não podendo registrar no computador e atender ao mesmo tempo, gesticulava para que outro o acudisse.

Nesse exato instante, o inesperado resolve acontecer: entrava na locadora a família do irmão Barbalho, um pessoal atuante na igreja. A esposa de Barbalho, sabedora da viagem de Vera, antecipou-se:

– E aí, irmão? Como é que tá se virando sem a esposinha…?

– É, a gente se vira, né? – responde Clemílson, tentando disfarçar a sengracez e o suor que, àquela altura lhe fazia brilhar a testa.

Os filhos do irmão Barbalho corriam de um lado para outro da locadora, insaciáveis diante da possibilidade de mexer nas coisas, derrubar, fazer arte, o que reservava ao próprio pai a função de domá-los:

– Menino, não mexe aí! Se vocês mexerem nessa prateleira, vão ver só uma coisa!

Os meninos mexiam, mas não viam coisa nenhuma além da ameaça do pai, que agora se virava para Clemílson, sem outro interesse a não ser o de perguntar o óbvio:

– Vai ver um filminho…?

– É…– responde Clemílson, adaptando-se à situação e adquirindo mecanismos de defesa.

O rapaz que ia embalar a fita retornava. A esposa do Barbalho chega ao que Clemílson mais temia, a pergunta que revela a inequívoca curiosidade da mulher:

– Poderia saber qual filme? Ou é segredo…? – ela pergunta com um tom de voz meio insinuante, meio cantado, lembrando o sotaque da Bahia, meio na brincadeira, meio sério e, para Clemílson, meio desconcertante.

– Quê isso?! Que segredo o quê! É só um documentário sobre tubarões. Vera e as crianças não ligam muito pra esse tipo de fita. – concluiu com um suspiro de alívio pela capacidade inesperada de improvisar.

A mulher ia dizer outra coisa, mas o alarme do carro deles disparou lá fora. Saiu o Barbalho, a esposa e os filhos, todos estabanados, e não voltaram mais. Clemílson, quase fez uma oração de agradecimento pelo “livramento” que experimentava, quando se lembrou do que estava realmente fazendo. Foi quando notou também que o tal Ricardo, esse que ficara de trocar a embalagem da fita, havia sumido outra vez e agora voltava. Deu a fita com a capa da locadora ao rapaz do balcão, que entregou a Clemílson.

– Prontinho – disse o rapaz do balcão. Devolução domingo até meia-noite. Paga na volta?

– Pago agora – preferiu Clemílson, já pensando em evitar novo embaraço na hora da devolução. E pagou.

– Prontinho – repetiu o rapaz do balcão. E Clemílson pensou consigo mesmo que essa devia ser a palavra mais usada por balconistas de locadora de vídeo em todo o país.

Saiu com sua fita protegida por um saco plástico. Chegou em casa. Nem tomou banho. Tratou de ligar o videocassete e inserir logo a fita. Esqueceu-se da pizza. O coração ainda batia forte, mais pela excitação do que estava para apreciar do que pela consciência. Estimulado por suas próprias razões, ia em frente.

A fita entrou no vídeo e começou a girar. Primeiro aquela exibição de diversas tonalidades de cores para ajuste. Depois, um aviso em inglês, português e espanhol proibindo reprodução, de acordo com a lei nº tal, aquelas coisas de sempre. Ansioso, pegou o controle para correr pra frente. Apertou a tecla FF e, para surpresa sua, o vídeo respondia com STOP. Vinha a imagem do canal de televisão, que exibia a fisionomia de Bóris Casoy cumprindo seu papel e dizendo que isso ou aquilo era uma vergonha. Deu PLAY, teclou FF outra vez. De novo a resposta do vídeo foi STOP. “Que droga”, pensou, já imaginando um telefonema para a locadora. Mas, calma! Se ejetasse a fita, poderia ver o que era, talvez um pedacinho que enganchou, nada que uma faca ou um garfo não pudessem consertar. Apertou a tecla EJECT. E a fita não foi ejetada. Apertou outra vez, e nada! Tentou dar PLAY de novo. Agora também não dava o PLAY. Não corria pra frente nem pra trás, não ejetava. “Meu Deus!”, pensou. Tenho que tirar essa fita daí!” Tentou várias vezes, e nada. Só dava o Bóris Casoy, falando, e falando, e falando… o vídeo agia como se estivesse desligado na tomada. Simplesmente não respondia. Ligou para a loja, só dava ocupado. Pensou em desmontar a máquina. Foi até o carro, pegou a caixa de ferramentas, abriu o aparelho. Mas não conseguiu tirar a fita. Estava presa lá dentro. Lembrou-se de um irmão da igreja que tinha uma loja que consertava videocassetes, mas logo lembrou-se também de qual fita estava dentro do seu. Não, não poderia ligar pra ele. “E agora, meu Deus?!” E agora até o nome de Deus soava inconveniente. Embora tantas vezes o tivesse usado como mera interjeição, a palavra não lhe parecia apropriada para o momento.

Tocou o telefone. Era o líder dos jovens dizendo que haveria uma festa surpresa para a Vanessa, pelo aniversário dela. Alguém entre os meninos havia se lembrado dele, já que estava “solteiro”. Clemílson não sabia o que responder. Ainda estava agoniado com a situação, respondeu que ligaria em seguida dizendo se iria ou não, que talvez não pudesse em face de trabalho que havia levado pra casa.

Entretanto, depois de muitas tentativas e de se convencer da absoluta impossibilidade de dividir essa situação angustiante com quem quer que fosse, ligou para o líder dos jovens e perguntou:

– Onde eu encontro vocês?

Dentro de vinte minutos via-se misturado com jovens e adolescentes num salão de festas de um bloco no Guará II, as luzes apagadas, alguns rindo baixinho, outros pedindo silêncio, até que a quantidade de gente fazendo psiu pra que os outros se calassem fazia por exigir um psiu mais volumoso e duradouro que os demais. Isso fez com que silêncio necessário perdurasse até que a aniversariante chegasse, e a festinha surpresa virasse apenas festinha.

O aniversário serviu para distrair Clemílson, que a princípio tentava disfarçar a tensão em que se encontrava, mas depois se descontraiu. Na volta para a casa, porém, a agonia voltou. O que fazer? Jogar fora o vídeo? Mas aí que história iria contar a respeito do aparelho? E o prejuízo? Um videocassete não era baratinho! Voltaria para a casa e continuaria tentando! Empurraria a fita pra frente, com uma chave de fenda, quem sabe cedesse… não, já havia feito isso. O dia seguinte seria sábado, as lojas de assistência técnica funcionariam até o meio-dia, mais ou menos. Poderia levar pra um desses técnicos, quem sabe ele não conseguiria em dois tempos resolver o problema. Pronto, faria isso!

Chegando em casa, tentou dormir, mas não conseguia. Orar antes de dormir, coisa que sempre fazia com Vera, tornara-se uma ironia agora. Como falar com Deus numa situação dessas? Virava de um lado para outro, numa sensação incômoda. Lembrou-se da própria adolescência, quando ouvira um líder comentar sobre uma passagem que alertava acerca a volta do Filho do Homem. Jesus voltaria num instante em que ninguém estivesse esperando… Misericórdia, se ele voltasse agora, e essa fita dentro do vídeo, e essa situação não resolvida… tá amarrado! O retorno de Cristo tá amarrado?! Meu Deus, que loucura!

Amanheceu, mas demorou a dar nove horas.

Clemílson levou o vídeo à loja. Novamente teve de pensar no anonimato. Como morasse no Cruzeiro, resolveu levar a um técnico na Asa Norte, só pra garantir. O técnico foi irredutível, disse que não poderia tirar a fita “na mesma da hora”, que o caso não era tão simples assim e que, se ele quisesse, levasse para outra assistência, mas que ninguém tiraria a fita de imediato. Por fim garantiu que na segunda-feira tudo estaria resolvido. Clemílson tentou de todas as formas assegurar que o conserto não passaria da segunda-feira. Na volta, passou na locadora e explicou o que estava acontecendo. Teve de conversar com o gerente, o que aconteceu gradativamente: primeiro o Ricardo, depois o rapaz do balcão, depois a irmã do gerente, que estava lá, por último, o próprio. Que suplício!

Agora só restava aguardar.

Passou o resto do dia.

Chegou o domingo e com ele as atividades da igreja, aquelas que tantas vezes envolvem pessoas como o nosso personagem. Ele trabalhava na recepção e estava escalado para o culto da noite. Seu posto era justamente entre o salão de reuniões e o hall de entrada, de modo que servia de interface entre o lado de dentro e o pessoal que vinha chegando. Estava responsável por ver lugares vazios e acomodar pessoas, ficar de olho e dar um toque na turminha de adolescentes que não pára de conversar e não está nem aí pro culto – desses que toda igreja tem – e facilitar a vida das mães, das gestantes, e daqueles jovens casais que ficam nos últimos bancos com mamadeira, chuquinha e carrinhos de bebê.

Mas chega o momento em que Deus fala por meio de quem está pregando. A mensagem era sobre o prato de lentilhas pelo qual Esaú trocara sua primogenitura com Jacó. Dizia o pastor que havia muita gente trocando sua condição em Deus por um prato de lentilhas e que tais pessoas deveriam reavaliar sua vida. Aquilo o incomodava. Mas a essa altura era necessário fingir.

Em casa, à noite, Vera ligou de Goiânia. Dizia estar morrendo de saudades, as crianças também, sem o papai ali não tinha graça. Vera estava bem, assistira ao culto na igreja freqüentada pelos irmãos dela, no Setor Bueno. Mas terminou o telefonema dizendo que amava o marido muito e que estava sentindo sua falta. Que quando voltasse para a casa, ela lhe faria uma surpresa.

Desligaram o telefone. E pela primeira vez, desde que a fita havia travado dentro do vídeo, Clemílson chorou.

A segunda-feira traz o retorno à movimentação. O Eixão, tanto do lado norte quanto sul, é um aglomerado de carros que se afunilam no sentido Eixo Monumental-Esplanada. Clemílson faz parte dessa massa de motoristas. No caminho, ouve a CBN. Gilberto Dimenstein fala com Eródoto Barbeiro sobre as estatísticas de infidelidade conjugal na América do Norte. Eródoto tenta achar termos de comparação com o quadro brasileiro. Dimenstein começa a falar sobre uma nova pesquisa, aquela que não trata de casos concretos, mas de intenções, o que ele chama de “infidelidade potencial”, e diz que, segundo a pesquisa, tantos por cento dos americanos nunca experimentaram concretamente a traição ao cônjuge, mas teriam feito isso nesta ou naquela condição ou época. Clemílson muda de estação, coloca na 92 FM, que transmite o programa da Presbiteriana de Brasília, justo na hora da mensagem. Ele desliga, com medo de que as palavras do pastor venham atingi-lo de cheio, como acontecera na noite anterior.

Após o expediente, a surpresa: Vera resolvera voltar mais cedo de sua viagem. As crianças ficaram com o irmão dela e só voltariam na quarta-feira, de manhã. Assim os dois poderiam ter um tempo só deles, sem os meninos. Investiriam no relacionamento, poderiam se amar, como há muito não faziam devido a um monte de pressões. Vera achou que o marido adoraria a idéia, até porque tinha sido negligente com ele e havia se lembrado daquela passagem que os maridos adoram que Paulo recomenda, etc e tal…

Clemílson, não esperando por essa, teve de apelar outra vez para sua capacidade de fingir. Fingiu alegria pela surpresa e pela noite amorosa, fingiu felicidade, fingiu gratidão e fingiu dormir.

Enquanto isso, para complicar, a assistência técnica não conseguira consertar o vídeo a tempo. O técnico que ficara de arrumar caíra doente, e o outro já tinha serviços na frente para entregar.

No dia seguinte, antes de ir para o trabalho, o telefone tocou. Vera atendeu e ficou sem entender.

– Amor, é pra você. O rapaz disse que é da locadora…

Clemílson gelou. Era o mesmo rapaz do balcão querendo saber se o problema já havia sido resolvido. Clemílson queria falar baixo e agir com naturalidade ao mesmo tempo, missão quase impossível. O balconista insistia que ele falasse um pouco mais alto. Por fim, Clemílson gritou com o rapaz dizendo que ligaria pra ele mais tarde. Vera continuava sem entender.

Já no serviço, tratou de ligar para a locadora, pedir desculpas ao rapaz e explicar que preferia falar a respeito do assunto em seu local de trabalho. Ligou também para a assistência técnica, mas teve outra surpresa: o técnico havia consertado o vídeo, tirado a fita de dentro dele e, como estivesse indo pra Asa Sul, resolvera – a título de cortesia – dar uma esticadinha até o Cruzeiro e deixar o vídeo e a fita na casa de Clemílson, que quase morre ao ouvir a notícia.

– Por que vocês resolveram levar??? – perguntou, visivelmente irritado.

– Ué, pensamos que o senhor iria gostar. – respondeu o rapaz. – Inclusive ligamos antes, mas não conseguimos falar.

Clemílson entrou em desespero. Ligou para a esposa. O vídeo já havia chegado, juntamente com a fita. Disse que estava em jejum e que não voltaria pra almoçar em casa, mas que gostaria de conversar com ela quando voltasse. Tinha algo muito sério pra dizer a ela.

De fato, ele entrou em jejum a partir daquele instante. Buscou, do mais sincero de seu íntimo, o perdão de Deus. Sentia remorso, não sabia definir se aquilo era arrependimento, mas precisava desesperadamente de solução. Questionou-se profundamente. Sabia o quanto era ruim só se entregar depois de pego; ainda assim, tentava vislumbrar luz no fim do túnel. Perguntava a si mesmo se era salvo. Usou o horário de almoço para estar a sós. Foi até a Prainha, estacionou à margem do lago e, num lugar solitário, clamou pela misericórdia de Deus. Todos os fatos se passavam em sua mente como num filme: o momento em que ia alugar a fita, o desejo de ir além, a fita sendo travada no vídeo, o aniversário, a assistência técnica, a noite sem dormir no sábado, a palavra do pastor no domingo, a CBN e o retorno de Vera. Sentia-se terrivelmente mal.

Após o expediente, abatido e com os olhos vermelhos, chegou em casa. Sabia que Deus o perdoara, mas conseguiria o perdão de Vera? Conseguiria o perdão do próprio Clemílson?

A mulher o recebeu com ternura. Abraçou-o, beijou-o carinhosamente.

– Ligaram da locadora – disse ela.

Clemílson não respondeu. Ela continuou:

– Já fui lá, devolvi a fita. Tive de pagar uma multa.

Ele continuava mudo. Ela voltou a falar:

– Nunca pensei que você era interessado em documentários sobre tubarões. Pena que a fita travou no vídeo, mas eu até vi um pedaço, antes de devolver…

Agora era ele quem não entendia. “Meu Deus!”, pensou, entre maravilhado e assustado. Teria Deus feito um milagre como prova de seu perdão? Seria isso lançar pecados nas profundezas do mar? O que teria acontecido? Foi aí que, numa fração de segundo, voltou sua mente à locadora, na sexta-feira, quando a mulher do Barbalho lhe perguntara que filme ele estava alugando. Ele respondera algo relacionado a documentário sobre tubarões. Teria sido por isso que o tal Ricardo voltara e demorara mais a trazer-lhe a fita? Teria ele ouvido e entendido que Clemílson desejava mesmo o tal documentário? Tudo indicava que sim, e a prova estava aí, diante dele! Arrepiava-se por dentro, diante do que acabava de constatar. Estava salvo!

Foi quando Vera, cujo nome significa verdadeira, lembrou-se de algo que ele havia dito pelo telefone:

– Agora, bem, você disse que tinha algo muito sério a dizer. O que é?

por Zazo, o Nego