À espera do 921

Deviam ser umas dez da noite. Nos subúrbios cariocas, as noites costumavam ser iluminadas apenas nas avenidas. As paradas de ônibus eram apinhadas de gente, em especial após o primeiro tempo de um jogo do brasileirão, ou depois de um culto evangélico de meio de semana, ou ainda ao final de alguma aula de cursinho. Era quarta-feira, e o horário já não inspirava muita liberdade aos transeuntes.

Miguel se dirigia a uma parada de ônibus. Acabava de participar de um daqueles cultos pouco freqüentados em sua igreja. Provavelmente pegaria um ônibus da linha 921, que faz o percurso entre Bangu e Parada de Lucas, visto que estava em Realengo e saltaria em Irajá. O 921, por não ir até o centro da cidade, custaria menos e deveria passar por ali dentro de uns três minutos.

Antes disso, o inesperado: um carro pára, com quatro sujeitos mal encarados, todos armados. O chefe deles anuncia o que está para acontecer, com a truculência própria de cada bandido. As vítimas, algo em torno de umas seis pessoas, apenas esperam a famosa frase do tipo “isto é um assalto”; mas a fala do sujeito surpreende. Diz ele:

– Todo o mundo que não for crente pode sumir daqui. Eu só quero os crente! (a discordância nominal “os crente” fica aqui registrada de propósito).

Fugiram todos, e, se alguém ali houvesse que fosse crente, evangélico ou “irmão” ou “bíblia”, esse pensou estar diante de um “livramento de Deus” e deu no pé. Afinal de contas, o malfeitor anunciara a que viera antes de tudo. Só um ficou: o Miguel.

O suposto líder dos bandidos queria ter certeza de que nosso amigo entendera o que havia sido dito. Afinal, ele fora o único a não aproveitar a abençoada oportunidade de fugir daquela gente perigosa. Por incrível que pareça, Miguel entendera bem. Parecia assustado, mas consciente do que se passava. Os quatro elementos entraram no carro, colocaram-no no banco de trás e cobriram sua cabeça com um capuz, tirando-lhe totalmente a visão do que se passava.

A partir daí, fez-se silêncio durante 27 minutos exatos. Miguel apenas sentia as curvas e alguns quebra-molas. Seu pensamento fervilhava. Em que lugar da cidade estaria agora? O que estava para acontecer? Sentiu no íntimo a possibilidade de não voltar mais. Daí sua mente deu uma guinada. Lembrou-se da conversão, do dia em que entrara pela primeira vez numa igreja. Tinha então 21 anos, gostava de diversão, namoro, festas. Naquela época, pensava que a vida se resumia em fins de semana divertidos. Mas um dia ouviu uma mensagem de doido, comunicada por um sujeito esquisito, dentro de um ônibus a caminho da Ilha do Governador. No início, estranhou o camarada, mas teve de dobrar-se. Seus argumentos eram convincentes, parecia até que o cara conhecia o vazio emocional que, muito escondido incomodava a ele, o Miguel. Mudou tudo na cabeça do rapaz. Quis ver se esse negócio de evangelho era verdade, era possível. De lá pra cá, a vida tinha virado de cabeça pra baixo. Quem o conhecia, percebeu logo a diferença. Quanto mais conhecia Jesus, mais desejava tê-lo por perto. Sua maneira de relacionar-se com as pessoas também vinha mudando. Perdoara o pai – o que em si já daria uma história à parte – e sentira a necessidade de ser perdoado por pessoas a quem prejudicara no passado. O amor por Deus e a vontade de obedecer-lhe só faziam aumentar. E, no andar das coisas, fizera um compromisso de fidelidade: jamais negaria sua fé em Cristo. E isso nos traz de volta ao banco de trás do carro, ao capuz, à situação de cabra-cega: talvez exatamente por isso tivesse sido seqüestrado.

Poderia ter fugido. Afinal, houve a chance. Até que ponto teria sido pecado fugir? Em meio a tantas idéias fervilhando na cabeça, forçoso era reconhecer que não se sentia exatamente aquele tipo de “herói da fé”. Lembrava-se de notícias a respeito da igreja perseguida em outras partes do mundo, de cristão que morria de forma tão brutal, como exibição de força de sistemas de governos esdrúxulos… afinal, o que estava acontecendo? O que queriam esses caras? Seriam traficantes de drogas? Estariam ligados a alguma organização criminosa?

Os minutos viravam horas. Foi-se pro espaço a noção do tempo. De repente, o carro parou. Saíram os quatro, sendo que os dois de trás conduziam nosso amigo, ainda vendado. Andaram uns dez metros, depois desceram escadas. O lugar parecia uma favela, talvez uma boca de fumo, parte de um esquema maior do narcotráfico. Chegaram a um quarto. Tiraram-lhe a venda.

O contato súbito com a luz, depois de tanto tempo, fez os olhos de Miguel reagirem à claridade. À sua frente, um sujeito com cara de poucos amigos apresentou-se como o chefão do “ponto”. Disse também que estava “a fim de matar um crente” naquele dia. Deu a Miguel a chance de voltar atrás quanto ao fato de ser cristão.

– Véi, cê tem cinco minutos pra mudar de idéia. Se tu é desse negócio de crente, vai morrer aqui “mermo”.

Mais uma vez, ele tinha escolha! Bastava dizer que “não era bem assim” e estaria livre. Afinal, havia uma arma apontada para sua cabeça. Qualquer um entenderia, até mesmo Deus… livramento, livramento… bastava uma palavra. “Você é crente ou não é?” A resposta seria um simples e monossilábico “não”, e estaria tudo bem.

– E aí, doutor? Já decidiu? Tu é crente ou não é? – soou a voz num tom de escárnio que saltava aos ouvidos.

– Sim, eu sou crente. – Foi a resposta.

Tudo o que Miguel esperava agora era o tiro, a surra, a tortura, qualquer ato de maldade. Mas o sujeito apenas o conduziu a outra sala, onde ficou sozinho com o nosso personagem. Sentou-se diante de uma mesa, pediu-lhe que fizesse o mesmo, colocou as mãos no queixo e, para surpresa sua e minha, chorou. E ficou ali chorando, uns quatro minutos, enquanto Miguel apenas o olhava, sem compreender o que acontecia.

– Minha mãe era crente – disse ele ainda soluçando. – Eu conheço esse negócio de poder de Deus, entendeu…? Tudo o que eu precisava era de um crente de verdade aqui. Tá difícil de achar um. Minha companheira está com umas esquisitices. Isso não é normal. Só pode ser armação lá do coisa ruim. Dava pra você… tipo… orar por ela…?

por Zazo, o Nego