Era uma vez…

Em nossa infância o simples som desta frase mexia com o nosso imaginário abrindo diante de nós uma dimensão no mundo das fantasias onde objetos ganham vida e animais conversam entre si, onde verdadeiros paraísos abrigam castelos encantados.

Infelizmente é assim que temos vivido nossa vida cristã, em um universo paralelo ao mundo real. No domingo de manhã a Bíblia em nossas mãos é a chave que abre este universo, tem a mesma utilidade do “era uma vez”. Nos tornamos maridos exemplares, mães cuidadosas, filhos obedientes. Mudamos nossa linguagem, de repente passamos a falar em Deus mais do que nos negócios. E quando entramos no templo – o castelo encantado do cristianismo – podemos, pelo menos por algumas horas, viver a fantasia de uma vida cristã autentica.

A primeira epístola de João é uma séria repreensão a esta pseudo-espiritualidade. É um desafio para vivermos algo real, no mundo real. É um alerta contra a maior artimanha de Satanás no mundo atual: tirar a vida cristã de seu cenário. Lendo as palavras do apóstolo encontramos por várias vezes a expressão “se dissermos…” seguida de um chamado à prática. O desafio de João é uma vida cristã prática, é viver o cristianismo dentro de seu cenário, o mundo. Olhando por esta perspectiva o apóstolo vai tratar de temas como: confissão, arrependimento, vitória, fé, unção, salvação, amor, perdão. Expressões que nós reduzimos a palavras, a experiências manipuladas nos recônditos laboratoriais dos nossos templos. Algumas delas atingiram a dimensão do mundo das fantasias – fé, vitória, unção, salvação; outras caíram em desuso, como matérias inconvenientes e desnecessárias excluídas da grade curricular – confissão, arrependimento, amor, perdão.

O AMOR

Vamos começar por aqui. O amor das nossas músicas é poético, tem rima e ritmo, aparece em meio a campos floridos, a estrelas cintilantes, um riacho cristalino ao pé de uma montanha, um amor paradisíaco e fantástico sempre acompanhado da expressão: “e viveram felizes para sempre”.

No capítulo 4 e versículo 8, João diz que Deus é amor. Vale a pena lembrar que o amor não define Deus, mas Deus define o amor. O apóstolo nos diz que o amor é da natureza de Deus, expressa Deus em sua essência, portanto, se queremos saber o que é o amor precisamos conhecer a Deus, porque ele é amor.

Isto é maravilhoso! O cenário onde Deus coloca o amor não é em campos floridos nem em paisagens paradisíacas, mas sim, numa cruz (Rm. 5.8). Quando quis nos ensinar sobre amor, Deus escolheu uma coroa de espinhos e três pregos, uma lança e um chicote. Ele reuniu estes elementos em um cenário “macabro” chamado Caveira, uma cruz, alguns carrascos, uma esponja com vinagre. Cusparadas, blasfêmias, torturas. Ouvimos de um Filho sofredor um grito pavoroso: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” E quando estamos a ponto de fechar o livro e dar a história por encerrada, quando estamos a ponto de voltar na livraria e reclamar com o vendedor – “Olha, você me vendeu este livro dizendo que era uma história de amor, mas, na verdade é um drama de péssimo gosto”- então ouvimos uma palavra de graça, um gesto máximo de amor: “Pai, perdoa-lhes porque não sabem o que fazem”.

O verdadeiro amor de Deus nunca se adaptaria aos nossos cenários, a crentes de paletó e gravata trocando abraços em templos climatizados só para cumprir o protocolo, a cantar de um amor em berço esplêndido enquanto cumprimentamos pessoas limpas e bem vestidas e as dizemos o quanto elas são importantes para nós (R$). Um amor tão espetacular que não pode ser dado a qualquer um, que deve ser guardado a sete chaves e que Deus só poderia demonstrar a pessoas tão boas quanto… – deixe-me ver – EU. O amor de Deus não pergunta: Porque eu deveria te amar? mas, sim: Como eu não poderia te amar? Ele não diz: eu te amo se…, mas sim, eu te amo apesar de. O amor de Deus é para prostitutas e enfermos, para excluídos (publicanos) e pecadores, para qualquer fariseu dentre nós que se converta ao ponto de cair de joelhos em prantos e dizer: “Pai, tem misericórdia de mim, pecador”.

O amor de Deus é um mandamento (1 Jo 4.7) que deve ser praticado dentro de seu cenário. O cenário que Deus escolheu é do tipo “quanto mais rústico melhor, quanto mais improvável e detestável melhor”. É amor que inclui um vizinho chato, um patrão mal humorado, o viciado da esquina, o detento do presídio, um irmão arrogante. Este é o elenco que Deus colocou no cenário – o mundo – para aperfeiçoar em nós o seu amor (1 Jo 4.17). Só que neste roteiro, não fomos inseridos para encenar ou representar. Na verdade, Deus nos colocou nesta história para nos trazer para a vida real, em um cenário real, sem dublês, sem cortes. É um amor que tira de nós a vocação diabólica de atores no cenário cristão, que tira nosso vício e obsessão pelo mundo de fantasias e nos leva a viver uma vida autêntica e verdadeira: “Se alguém disser: amo a Deus, e odiar o seu irmão, é mentiroso” (1 Jo 4.20).