A Jornada, um sonho Bunyano

Sonhei, e em meu sonho encontrava-me perdido numa terra árida, cheia de pedregulhos. As montanhas estavam nuas, não havia árvores – talvez alguém as tivesse arrancado. No horizonte o sol frio e preguiçoso parecia querer se por antes da hora.

Perdido que estava, saí a procura de um caminho. Afinal, viajar com esperança é melhor que chegar – assim eu pensava. Passei a caminhar pelo que parecia uma antiga e sinuosa trilha.

Logo no início da caminhada avistei duas figuras empurrando uma a outra, gesticulando muito, como se estivessem brigando. Pensei: talvez sejam marido e mulher resolvendo suas desavenças durante a caminhada. Seria prudente interrompê-los? Ao me aproximar deles duas coisas ficaram claras: (1) tratava-se mesmo de um casal; (2) eles se pareciam muito um com o outro, apesar da diferença de costumes pareciam irmãos; (3) a arenga deles era contínua.

Tradicionalismo, você não percebe que está caduco? O tempo passou e você está por fora. A melhor maneira de alcançar a Ilha-que-desce-dos-céus é através do que há de mais moderno. A tecnologia está aí para te substituir.

Novidade, minha irmã, como você é ingênua. As gerações que, antes de nós buscaram a Ilha nos deixaram seus passos exatamente para os repetirmos.

— Olá. Algum de vocês sabe me dizer qual o caminho para a Ilha-que-desce-dos-céus?

— Como você ouviu falar da Ilha? Você frequentou algum catecumenato?

— Claro que foi pela internet – interpelou Novidade.

— Nem por um nem por outro caminho. Simplesmente acordei neste lugar árido e percebi que não pertenço a este lugar. Comecei a caminhar e os ouvi mencionando a tal Ilha-que-desce-dos-céus. Será que eu não pertenço a este lugar?

— Você não tem certeza? Disse Tradicionalismo.

— Não. Apenas tenho um bom palpite aqui dentro.[1]

— Mas você não pode permanecer na dúvida. Se repetir os passos dos nossos antepassados…

— Não sairá do lugar! Interrompeu Novidade. O negócio é pesquisar tudo de novo que saiu sobre a Ilha. Conheço um ótimo professor a distância — ele se chama Google. É praticamente onipresente e não tenho dúvidas que está bem próximo da onisciência.

— Mas quem são vocês?

— Somos Novidade e Tradicionalismo. Apesar de parecermos diferentes somos filhos de Zeitgeist. Nosso pai é o espírito da época. Nós conduzimos a maioria das pessoas que estão interessadas em ir para a Ilha.

— Que bacana! Então vocês já estiveram na Ilha?

— Não. Nós apenas mostramos o caminho. Minha irmã insiste que o caminho é a modernidade, o intelectualismo, o psicologismo e a busca pessoal pela felicidade. Eu insisto que o caminho está em repetir os passos dos nossos ancestrais tão perfeitamente quanto eles mesmos.[2]

— Isto significa que vocês não me acompanharão na jornada?

— Não. Você deve escolher entre um de nós.

Estava anoitecendo. O uivo do vento frio cortava por minhas roupas de pano cru. Novidade e Tradicionalismo avistaram uma mureta, como um ponto de ônibus e decidiram que ficaraiam ali. Tinham ainda muito a discutir durante a noite. Aqueles dois pareciam que nunca chegavam a nenhum acordo!

Precisava descansar, e aquele ti-ti-ti estava atrapalhando minha cabeça… Me desculpei com os amáveis filhos de Zeitgeist e fui descansar do outro lado da estrada, no relento mesmo. A noite voou.

Ao amanhecer não os vi mais. Será que eles voltaram a caminhar? Corri adiante da estrada mas não os encontrei. Será que eles haviam retornado? Mas eles não podiam andar pra trás… A Ilha-que-desce-dos-céus… O vazio no meu coração…[3]

Decidi que não procuraria mais por eles. Seguiria a estrada. Mesmo sem saber ao certo como chegar na tal Ilha, nem mesmo se ela existia, decidi seguir adiante.

Meus passos eram ora firmes, como quem sabe exatamente para onde vai. As vezes vacilantes (afinal, pra onde estou indo…)

Bem adiante na estrada avisteu outra dupla, desta vez de mãos dadas, mas não como os namorados costumam fazer. Eles caminhavam com passos firmes, seu tom de voz era amistoso e gentil, apesar de eventualmente pausarem a caminhada para uma conversa gesticulada, mas que surpreendentemente terminava num abraço cuja silhueta naquele sol preguiçoso era lindo de ver!

Não corri até eles. Estava meio traumatizado com meus conhecidos do dia anterior. Assim mantive meu ritmo de caminhada. Não percebi que tinha sido visto por eles que, discretamente reduziram seu ritmo para nos encontrarmos poucos metros adiante.

— Olá. Meu nome é Relevância e este é meu irmão Tradição. Somos filhos da Sabedoria Divina.[4]

— Ora ora, ontem conheci dois irmãos com nomes parecidos com os de vocês. Por acaso não são parentes?

— Não. Conhecemos bem esta dupla, mas eles não são do nosso país. Nós somos da Ilha que vem dos céus.

— Não diga! Então vocês conhecem o caminho para lá? Me digam então: o que preciso para chegar nesta Ilha? Novidade me ofereceu um GPS. Tradicionalismo me ofereceu uma velha cartilha cheia de traças. Eu não consegui me decidir entre eles. O que vocês me dizem? A quem eu devo me agarrar para chegar a Ilha?

— À Verdade. Ambos responderam em uníssono.[5]

— Mas quem é este?

— A Verdade é a única capaz de preencher o vazio do nosso coração à procura da Ilha. A Verdade é relevante, porque não está sujeito a destruição do tempo. A Verdade também se manifesta na história e todas as Suas pegadas devem ser seguidas na tradição.[6]

Um abatimento veio sobre meu rosto.

— Por que você ficou abatido de repente?

— Achei que vocês me dariam uma fórmula, um clichê, alguma coisa para me apegar… Aí eu ficaria mais seguro.

— Você não acha esse caminho perigoso? E se esta segurança não fosse verdadeira?[7]

— Como assim?

— E se a sua segurança não estiver garantida pela Verdade?

— Então certamente estes apegos não me levariam à Ilha-que-desce-dos-céus.

— Correto. Por isso nós queremos convidá-lo a seguir viagem conosco.[8]

— Os outros disseram que eu deveria seguir sozinho. Vocês querem que eu vá com vocês?

— Claro!

— Finalmente decidi. Não seria seduzido por Novidade e por Tradicionalismo. Decidi que o que nortearia minha jornada seria unicamente a busca pela Verdade. Venha ao meu encontro Verdade bendita que conduz aos céus!

Notas:

[1] Dostoievski: Todo Homem carrega dentro de si um vazio do tamanho de Deus;
Eclesiastes 3:11: Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até ao fim.
[2] Efésios 6:12: porque a nossa luta não é contra o sangue e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças espirituais do mal, nas regiões celestes;
2 João 1:7: Porque muitos enganadores têm saído pelo mundo fora, os quais não confessam Jesus Cristo vindo em carne; assim é o enganador e o anticristo.
[3] Apocalipse 21:10-11: e me transportou, em espírito, até a uma grande e elevada montanha e me mostrou a santa cidade, Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, a qual tem a glória de Deus.
[4] 2 Coríntios 1:1-5: Eu, (…) quando fui ter convosco (…) não o fiz com ostentação de linguagem ou de sabedoria. (…) decidi nada saber entre vós, senão a Jesus Cristo e este crucificado. (…) minha palavra e a minha pregação não consistiram em linguagem persuasiva de sabedoria, mas em demonstração do Espírito e de poder, para que a vossa fé não se apoiasse em sabedoria humana, e sim no poder de Deus.
[5] João 8:32: e conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará.
[6] Atos 17:23: porque, passando e observando os objetos de vosso culto, encontrei também um altar no qual está inscrito: AO DEUS DESCONHECIDO. Pois esse que adorais sem conhecer é precisamente aquele que eu vos anuncio;
Mateus 5:17: Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas; não vim para revogar, vim para cumprir.
Atos 3:18: mas Deus, assim, cumpriu o que dantes anunciara por boca de todos os profetas: que o seu Cristo havia de padecer.
Atos 10:43: Dele todos os profetas dão testemunho de que, por meio de seu nome, todo aquele que nele crê recebe remissão de pecados.
[7] 1 João 5:21: Filhinhos, guardai-vos dos ídolos.
[8] Lucas 17:21: Nem dirão: Ei-lo aqui! Ou: Lá está! Porque o reino de Deus está dentro de vós. A Verdade virá ao seu encontro e te ensinará o caminho.
João 14:8-9: Replicou-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, e isso nos basta. Disse-lhe Jesus: Filipe, há tanto tempo estou convosco, e não me tens conhecido? Quem me vê a mim vê o Pai; como dizes tu: Mostra-nos o Pai?