Interpretação bíblica: literal ou alegórica?

Muita gente pensa que a interpretação da Bíblia é complicada (de fato não há como negar que algumas partes são mesmo), porém caem no erro de tentar alegorizar tudo.

No passado foi assim. Os judeus helenizados – por volta de 300 a.C. – sob forte influência da prática literária dos gregos, começaram a interpretar seus escritos sagrados – hoje o conhecido como Antigo Testamento – sob a ótica da alegorização. Especula-se que eles começaram a fazer uso deste método de interpretação pelo mesmo motivo dos gregos: reinterpretar conceitos vistos por eles mesmos como vergonhoso (e.g.: os sacrifícios exigidos por Deus no A.T.). Mais adiante na história este método ganhou força. Filo, de Alexandria, foi um dos mais famosos alegoristas judeus da história (ele viveu na época do nascimento de Jesus Cristo).

A igreja católica também passeou por vários séculos usando o método de interpretação alegórico, o que mudou somente com o advento da reforma protestante.

O grande problema do método alegórico é que, se decidirmos segui-lo, poderemos defender qualquer coisa que pensarmos. Por exemplo; em Gênesis 2.10 encontramos a seguinte passagem: “E saia um rio do Éden para regar o jardim, e dali se dividia, repartindo-se em quatro braços”. O mesmo Filo, citado acima, ao invés de entender o simples texto literalmente, interpretou o primeiro rio como a representação da bondade, enquanto os quatro rios indicaram as quatro virtudes da filosofia grega: prudência, domínio próprio, coragem e justiça.

Ora, se Filo, somente com este pequeno texto, conseguiu tal interpretação, insisto que bastam alguns poucos minutos para qualquer um conseguir “interpretar” as Escrituras de modo que ela defenda qualquer idéia que venha à mente do intérprete.

Porém, é interessante notar que Jesus não fez isto. Ao contrário, nas oportunidades registradas nos Evangelhos vemos que ele interpretou o Antigo Testamento literalmente:

O Espírito do Senhor está sobre mim, pelo que me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos, e apregoar o ano aceitável do Senhor.

Tendo fechado o livro, devolveu-o ao assistente e sentou-se; e todos na sinagoga tinham os olhos fitos nele. Então, passou Jesus a dizer-lhes: Hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir. (Lucas 4.18-21)

Jesus, na verdade, estava lendo um texto profético registrado no livro de Isaías:

O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados, enviou-me a curar os quebrantados de coração, a proclamar libertação aos cativos e a pôr em liberdade os algemados; a apregoar o ano aceitável do Senhor e o dia da vingança do nosso Deus; a consolar todos os que choram (Isaías 61.1-2)

Vemos isto novamente ao comparar o texto de Lucas 7.21-23 com o de Isaías 35.5-6. Desta vez Jesus deixa claro que ele era de fato o cumprimento da profecia de Isaías.

Naquela mesma hora, curou Jesus muitos de moléstias, e de flagelos, e de espíritos malignos; e deu vista a muitos cegos. Então, Jesus lhes respondeu: Ide e anunciai a João o que vistes e ouvistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres, anuncia-se-lhes o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço. (Lucas 7.21-23)

Então, se abrirão os olhos dos cegos, e se desimpedirão os ouvidos dos surdos; os coxos saltarão como cervos, e a língua dos mudos cantará; pois águas arrebentarão no deserto, e ribeiros, no ermo. (Isaías 35.5-6)

Agora pense. Imagine que você só tem os textos do Antigo Testamento em mãos (os de Isaías). Esses sim são textos complicados. Dá uma vontade enorme de alegorizar para tentar “interpretar melhor”. Mas, séculos depois, veio o homem Jesus e cumpriu as profecias. Literalmente! E ainda citou os textos antigos para que todo mundo se lembrasse deles.

Então eu lhe pergunto: por que alegorizar? Por que não aceitar a interpretação literal? Será que não temos fé suficiente para crer que, para Deus, até as coisas mais esquisitas podem acontecer?