Discernir a “presença de Deus” para muitos cristãos é algo complexo e que gera incertezas praticamente insolúveis. Entramos na “presença de Deus”? Tenho condições de perceber a “presença de Deus”? Estou vivendo de uma forma digna da “presença de Deus”?

Determinadas buscas pela “presença de Deus” são tão mal conduzidas que o resultado inevitável é o ceticismo. Quantos de nós não conhecem aqueles que, no passado, tinham convicção da “presença de Deus” em sua vida, mas que por fatores diversos não conseguem percebê-la mais?

Um dos maiores obstáculos na espiritualidade contemporânea está justamente na crença de que a “presença de Deus” se refere a um objeto da nossa percepção. Ou seja, se consigo sentir, ver ou, de qualquer outra forma mais ampla, perceber a “presença de Deus”, ela é real. O caso contrário também é verdadeiro: aquilo que não está no meu campo perceptivo simplesmente não é uma realidade para mim.

A história desse vício devocional é longa, mas podemos dizer com precisão que passamos a submeter tudo à percepção humana na modernidade. Foi quando a teoria das ideias de Descartes e Locke tornou-se o modelo padrão de entendimento sobre nossa relação com o mundo. Um abismo foi criado entre as qualidades primárias de cada coisa e as qualidades secundárias (formadas por como eu as percebo). Desde então esse abismo nunca mais foi superado pela filosofia humanista — influenciando a teologia e a espiritualidade contemporânea.

Essa lacuna entre o que as coisas realmente são e como eu as percebo nos joga em um ceticismo absurdo. Como poderemos compartilhar com as pessoas que aquilo que eu percebo, que depende do meu aparato perceptivo, poderá ser percebido por outras pessoas? E mais, como minha percepção pode ser a mesma para outros? Simplesmente estamos isolados em nosso labirinto de representações — das criaturas, das pessoas e do próprio Deus!

“Presença” de Deus é uma metáfora físico/espacial aplicada a Deus. Esse é o modo normal como nós podemos conhecê-lo: por meio de analogias, modelos e metáforas. A grande questão é se podemos usar essa ou aquela metáfora. Existem metáforas e analogias melhores do que outras? Claro! As que são canonicamente chanceladas, ou seja, aquelas que o próprio Deus utilizou para se revelar. Elas carregam a autorização revelacional sem qual estaríamos no escuro de nossas preferências para falar sobre Deus.

Determinadas buscas pela “presença de Deus” terminam em ceticismo justamente porque estão tão presas à percepção subjetiva das pessoas que, quando essa percepção falha em discernir o quão perto Deus está, toda a espiritualidade construída dessa forma naufraga. Deixamos de ser buscadores de sua presença e passamos a duvidar se um dia já a sentimos.

As Escrituras usam metáforas físico/especiais para se referir a Deus: “a presença de Deus” (lipnê yhwh), “estar diante de Deus” (‘amad lipnê yhwh) e até “andar diante de Deus” (hi thallêk / halak lipnê yhwh). Entretanto, nenhum desses usos submete-se às modernas e subjetivas teorias da percepção que tanto estamos habituados.

Quando as Escrituras utilizam metáforas sobre a “presença de Deus” para falar sobre nossa relação com Ele, isto é feito a partir de um contexto da corte da realeza. Uma pessoa que se colocava ou andava “na presença de rei” era alguém autorizado pelo rei a entrar em sua presença e servir como seu mordomo (Dn 1.4). Aquele que se colocava/andava diante de Deus tinha acesso à corte divina e era comissionado a um serviço em seu nome.

Mais do que um assunto que compete às nossas capacidades subjetivas de percebê-la ou não, a “presença de Deus” é uma das expressões utilizadas pelo texto bíblico para comunicar a natureza da nossa relação com o Pai. Como um senhor no cuidado e na comissão dos seus vassalos, nós também estamos — independente da vivacidade dos nossos sentidos perceptivos — na “presença de Deus”. Tivemos nossos olhos abertos para saber que estamos diante dele e que temos uma comissão para dizer sim!